O Estado de S. Paulo

Uma história e duas versões

- •✱ ROBERTO BRANT ✱ EX-MINISTRO DA PREVIDÊNCI­A

Háumamp lo consenso entre os brasileiro­s, de todas as regiões e em todas as situações sociais, de que o nosso país vive uma crise profunda e perigosa. O sentimento generaliza­do é de mal-estar e de descrença. Não contamos mais com o progresso como coisa certa, chegando aponto deter medo do futuro e saudades do passado.

O acordo, no entanto, termina nessas percepções sombrias. Quando se trata de entender as causas que nos trouxeram a esta situação, a divergênci­a é completa e as visões, irreconcil­iáveis. A sociedade está dividida em narrativas muito diferente seque conduzem a soluções ques e opõem de modo radical.

Estamos vivendo no presente as consequênc­ias de uma herança política e administra­tiva que nos legou uma inédita recessão econômica e a deterioraç­ão fiscal e institucio­nal do Estado. A regeneraçã­o da economia e a normalizaç­ão da vida do País, no entanto, estão sendo empreendid­as em meio a indesejáve­is conflitos e malentendi­dos.

Já vivemos muitas crises econômicas antes, mas elas foram superadas e anormalida­de voltou ase impor. Hoje já não estamos tão certos de que anormalida­de vá voltara serem breve o modo dominante na vida do País, porque o sistema político deixou de funcionar, uma certa desordem institucio­nal está em andamento e as saídas não estão à vista no horizonte.

Uma boa parte da opinião, com o apoio de poderosas estruturas de comunicaçã­o e a colaboraçã­o de setores do sistema judicial, construiu uma versão da nossa realidade segundo a qual a causa principal desta c ris eéacorrupç­ãon apolítica e no Estado. O baixo cresciment­o econômico, os juros, os déficits do setor público e seu endividame­nto, a desigualda­de social, tudo isso resultou quase que exclusivam­ente da corrupção de agentes públicos e sua impunidade, e não de escolhas erradas de políticas públicas.

Se essaéaverd ade, as soluções estão na polícia, no Ministério Público e no Judiciário, e o papel mais urgente do Estado é o de investigar, prender, denunciar e condenar. As outras funções do Estado podem esperar. A grande reforma de que o País precisa é a reforma moral.

Se essa narrativa fosse fiel à realidade, nosso futuro seria realmente sombrio. Sabemos bem que a prisão de criminosos não põe fim ao crime e há mesmo momentos em que a elevação da criminalid­ade se dá simultanea­mente ao aumento das punições. A corrupção, mesmo que em outra escala , é algo indissociá­vel da humanidade e ocorre em todos os tempos e em todos os lugares. A reforma moral da sociedade é um objetivo que está fora do alcance dos homens. Um princípio lógico, que não devemos ignorar, é que é inútil propor problemas para os quais não há solução.

O combate à corrupção faz bem à moral de um povo e deve ser atividade permanente das instituiçõ­es públicas, mas a aplicação da lei penal não é a única projeção do poder e da ação do Estado. Pode confortar os instintos mais sensíveis ou aliviar as dores do ressentime­nto numa sociedade tão pobre e desigual, mas não resolve os problemas reais da população nem justifica, por si só, a existência do Estado moderno.

Há uma versão alternativ­a para a nossa crise, segundo a qual a corrupção sistêmica que se instalou nas instituiçõ­es do Estado e nas suas empresas ocasionou graves danos ao patrimônio público e, algumas vezes, levou a erros de política pública, mas não é por si só explicação suficiente para os desequilíb­rios que nos trouxeram ao atual estado da economia.

A crise fiscal que imobiliza o Estado brasileiro, em todos os seus níveis, advém da expansão imoderada dos gastos públicos, decorrente de dispositiv­os legais e constituci­onais, que estão fora do controle dos governos. Gastos com pessoal e aposentado­rias crescem, mesmo na recessão, acima do cresciment­o da renda nacional e da arrecadaçã­o tributária, benefician­do grupos minoritári­os de brasileiro­s, em prejuízo dos gastos com saúde, educação e segurança que beneficiam todos, e empurrando o Estado para o colapso financeiro.

A expansão automática desses gastos improdutiv­os produz déficits e endividame­nto, que arruínam o Estado, paralisam a máquina pública, criam uma situação de conflito entre os governos e a população que depende dos serviços públicos e minam a confiança na democracia e no sistema político.

O esgotament­o da capacidade fiscal do Estado brasileiro é um processo que vem de longe, foi exacerbado após a Constituiç­ão de 1988 e chegou ao limite nos últimos governos. Para ser revertido precisa de duras reformas legislativ­as, especialme­nte a da Previdênci­a e a do serviço público, além de ampla privatizaç­ão.

Quando a chamada luta contra a corrupção desvia a atenção da sociedade desses objetivos estruturai­s e desorganiz­a o funcioname­nto do sistema político, o efeito colateral inevitável é a conservaçã­o dos privilégio­s, a perpetuaçã­o das injustiças distributi­vas patrocinad­as pelo Estado e a completa perda de dinamismo da economia.

A luta contra a corrupção pública é necessária, mas o discurso de que o fim da corrupção é possível, que ele depende apenas da vontade e da ação da polícia, de procurador­es e de juízes, e será a solução para a maioria dos nossos grandes problemas, encerra uma ideia errada e perigosa, pois dispensa a reforma do Estado e torna a nossa crise um problema sem solução.

O verdadeiro desafio do País é reformar o Estado para libertar a economia privada e limitar o ambiente institucio­nal que favorece as oportunida­des de corrupção, o que está sendo tentado, apesar de muita oposição. Em outras ocasiões da nossa História o discurso do combate à corrupção chegou a dominar o debate político e contaminar a sociedade. Ao final só provocou tragédias, desilusões e mudanças no poder, sem alcançar o fim da corrupção, como agora estamos vendo.

Será que não vamos aprender nada com nossos erros?

Será que não vamos aprender nada com os nossos erros?

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