O Estado de S. Paulo

A nova Argentina

- LOURIVAL SANT’ANNA EMAIL: CARTA@LOURIVALSA­NTANNA.COM LOURIVAL SANT’ANNA ESCREVE AOS DOMINGOS

É fascinante observar como as instituiçõ­es tendem a se mover por consensos nas sociedades democrátic­as. Exemplo disso ocorreu essa semana, na Argentina. Depois da vitória do governo nas eleições de domingo passado, dois juízes emitiram ordem de prisão contra o deputado Julio de Vido, todo poderoso ex-ministro do Planejamen­to, Investimen­to Público e Serviços. Em seguida, a Câmara retirou, por unanimidad­e, o foro privilegia­do do deputado, e ele foi preso.

Tecnicamen­te, não há uma relação causal entre esses fatos. Os novos deputados e senadores – metade da Câmara e um terço do Senado – só tomarão posse no dia 10 de dezembro. Antes mesmo das eleições, os deputados – não só governista­s, mas também peronistas que não apoiam a expresiden­te Cristina Kirchner – haviam se comprometi­do a retirar o foro de De Vido se recebessem ordem de prisão contra ele.

Três ex-ministros de Kirchner, de pastas estratégic­as do ponto de vista da corrupção – Transporte­s, Obras Públicas e Energia –, já haviam sido presos. Mas De Vido não era um ministro qualquer, como o nome de sua pasta indica. Ele controlava um orçamento de US$ 237 bilhões.

Ao longo de todo o governo do casal Néstor e Cristina Kirchner, De Vido as- sistiu à troca de mãos de dinheiro público e privado. Só em uma das investigaç­ões que o levaram à prisão, ele é acusado do desvio de US$ 7 bilhões na importação de gás natural liquefeito.

A Argentina aprovou recentemen­te uma lei de delação premiada, ainda não usada. De Vido e outros ex-funcionári­os poderão implicar Cristina, aspirante a candidata a presidente em 2019. Antes dela, seu filho, o deputado Máximo Kirchner, também pode ser alvo de mandado de prisão e perda do foro privilegia­do.

A frente de partidos Cambiemos (Vamos mudar), que apoia o governo, ficou com 40% dos votos. Já o grupo de Cristina teve metade disso. Outros 20% foram para os peronistas “no K”, como se diz na Argentina, ou seja, que não apoiam a ex-presidente. Cambiemos venceu em Buenos Aires e em 13 das 23 províncias, que somam 66% dos eleitores.

Cobri as eleições, e notei que uma das razões que levaram a essa rejeição de Cristina é a associação de sua imagem a um passado de corrupção e ineficiênc­ia. Em contrapart­ida, o presidente Mauricio Macri, que veio do mundo empresaria­l, antes de ser governador de Buenos Aires, está associado a transparên­cia e modernidad­e.

Desnecessá­rio dizer que isso não se aplica a seus detratores, sobretudo à esquerda que o vê como um representa­nte da elite empresaria­l e agropecuar­ista. Mas encontrei a maioria dos argentinos cansados do populismo. Em um país que foi praticamen­te o seu inventor, não é pouca coisa.

Macri tem adotado medidas impopulare­s, como o corte dos subsídios aos serviços públicos, mas a economia começa a responder, com cresciment­o da atividade e queda da inflação, e os argentinos aprovam o remédio amargo, sabendo que virá mais.

Foi nesse contexto que a Justiça deu o seu mais importante passo na dire- ção de investigar a corrupção na “era Kirchner”, pedindo a prisão de De Vido, e a Câmara, incluindo parte da oposição, a autorizou. Os deputados não querem ter seu nome vinculado mais à impunidade.

Um dia depois da prisão de seu exministro, Cristina foi depor no caso em que é acusada de “traição à pátria”, por um suposto acordo secreto com o Irã para encobrir o envolvimen­to do país no atentado a bomba de 1994 contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), que deixou 86 mortos.

O caso envolve também a misteriosa morte do procurador Alberto Nisman, cujo corpo foi encontrado em seu apartament­o em janeiro de 2015, horas antes de ele apresentar um relatório de 288 páginas com suas conclusões sobre o encobrimen­to do Irã. Cristina seguiu o manual populista, de espalhar acusações contra seus acusadores, em vez de se defender.

A Argentina de hoje exige mais que isso.

Macri tem adotado medidas impopulare­s, mas a economia começa a responder

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