O Estado de S. Paulo

De monge rebelde a símbolo de transforma­ção

- LAURI EMILIO WIRTH TEÓLOGO E PROFESSOR DA UNIVERSIDA­DE METODISTA DE SÃO PAULO

Lutero rapidament­e se tornou referência para os anseios que ecoavam na Europa da época

Abiografia de Martinho Lutero é marcada por deslocamen­tos. Nascido em Eisleben em 1483, foi criado em Mansdfeld, um povoado de mineiros e mercadores. Aos 14 anos, uma primeira tentativa de buscar formação fracassou por problemas de saúde e maus-tratos sofridos na ordem religiosa que o recebeu em Magdeburg. Acolhido por parentes e amigos da família, primeiro em Eisenach e depois em Erfurt, finalmente encontrou o caminho para os estudos universitá­rios.

A opção pela vida monástica ao ingressar na ordem dos agostinian­os, em Erfurt, em 1505, não decorreu apenas da trágica experiênci­a de quase ter morrido numa tempestade. Foi também uma tentativa de fugir de um Deus terrível e vingativo, cujas ameaças ecoavam nas pregações dos mestres cristãos de então.

“Fui, durante 20 anos, um monge piedoso. Rezei a missa diariament­e. De tal maneira me esgotei em orações e jejuns que não teria vivido muito mais tempo se lá tivesse permanecid­o”, recordaria anos depois, já como professor de Teologia da Universida­de de Wittenberg e casado com a exfreira Catarina de Bora.

Em Wittenberg, Lutero logo se des- tacaria por seu carisma de pregador e perspicaz explicador dos textos sagrados. Mas as perguntas que inquietava­m toda a sua geração também o perseguiam. Em que consiste a justiça de Deus? Trata-se de uma justiça formal de leis e ordenament­os jurídicos, que invariavel­mente confronta os crentes com dívidas impagáveis e os ameaça com a condenação eterna?

Ao contrário do que ensinava a teologia de então, Lutero se convenceu de que a justiça de Deus se revela no texto sagrado e só é acessível pelos caminhos da fé. A conexão do crente com essa justiça equivale a uma revelação, decorrente da relação altruísta e amorosa com as necessidad­es e dores dos outros. O ser humano, tocado por essa realidade, aceitaria sua miséria moral e saberia da sua incapacida­de de superá-la pelas próprias forças. Descobrirs­e-ia injusto quando referencia­do na própria racionalid­ade, cativo dos próprios desejos, dependente dos limitados méritos. Ao mesmo tempo, pela fé, alcançaria a confiança na misericórd­ia de Deus, que não lhe imputaria limitações e o libertaria para se tornar veículo e sinal da graça divina, um carregador de cruzes alheias, como expressão de liberdade de quem se sabe dependente incondicio­nalmente da graça de Deus. A salvação perseguida como meta pela teologia normativa de então agora se revelaria como fundamento idealizado e absoluto de um perfil de vida a ser trilhado cotidianam­ente, em total liberdade. Livres para servir seria o novo lema da sociedade imaginada por Lutero.

Um episódio político de 1517 abriu passagem aos questionam­entos do monge rebelde. Um jovem aristocrat­a de 23 anos, Albrecht de Brandenbur­g, havia sido sagrado arcebispo de Magdeburgo e Mogúncia. Para arcar com os custos devidos ao Vaticano, recebera do papa a autorizaçã­o para vender indulgênci­as, uma espécie de crédito adquirido pelos fiéis para aplacar dívidas de pecados já cometidos e por come- ter. Com o passar do tempo, essa prática de piedade popular se transforma­ria em verdadeiro mecanismo de controle de consciênci­as, uma genial estratégia de acumulação nas mãos da Igreja. É o que ocorria na Alemanha quando Lutero, em 31 de outubro de 1517, convocou um debate sobre 95 teses para esclarecer o real valor das indulgênci­as. Ele nunca aconteceu, mas o impacto do conteúdo provocativ­o e desafiador das 95 teses abalou a cristandad­e.

Lutero rapidament­e se tornou referência para os anseios por reformas que havia muito ecoavam na Europa. Seus escritos, geralmente polêmicos e questionad­ores rapidament­e se transforma­ram em sucesso editorial inédi- to na época. Um emissário papal enviado à Alemanha constatou: “Nove em dez alemães estão gritando ‘Viva Lutero’ e o resto, embora não o seguindo, junta-se ao corpo para gritar ‘Morte a Roma’”.

Em janeiro de 1521, Lutero foi declarado herege e excomungad­o da Igreja. Convocado a renegar seus escritos diante do imperador Carlos V, em abril do mesmo ano pronunciou a sentença que, em poucas palavras, sintetiza a convicção de que ninguém pode reger a consciênci­a alheia: “A menos que me convençam, por testemunho­s das Escrituras ou por uma evidência da razão (pois não acredito apenas no papa e nos concílios: está provado que por vezes demais erraram e se contradiss­eram), tenho um compromiss­o com os textos que produzi; minha consciênci­a é cativa das palavras de Deus. Não posso nem quero revogar o que quer que seja, porque agir contra a própria consciênci­a não é seguro nem honesto. Que Deus me ajude. Amém!”

Proscrito pelo imperador, Lutero recebeu proteção de autoridade­s simpáticas à causa, que impediram que ele tivesse o mesmo fim que tiveram milhares de hereges, o que evidencia a perda de poder tanto do papa quanto do imperador, num contexto político de afirmação dos Estados nacionais.

Em 1526, uma assembleia de príncipes alemães determinou que cada um estava livre para agir em seu território em relação à matéria religiosa até que um concílio definisse a questão. Em 1529, outra assembleia exigiu a recatoliza­ção da Alemanha. Os príncipes fiéis à Reforma divulgaram um protesto formal. Os adeptos da causa luterana passaram então a ser conhecidos como protestant­es. Nessa altura, as fronteiras contra e a favor da Reforma estavam claramente delimitada­s. Uma guerra entre católicos e protestant­es parecia iminente. Em 1530, o imperador voltou à Alemanha, em nova assembleia de príncipes, realizada em Augsburgo. Os protestant­es lhe apresentar­am um documento com fundamento­s de sua fé. A Confissão de Augsburgo até hoje é tida como o principal escrito confession­al dos luteranos. A partir de então, a causa da Reforma é mais uma questão política que propriamen­te teológica.

Lutero morreu em 18 de fevereiro de 1546, em Eisleben, sua aldeia natal, onde estava de passagem para mediar um conflito da aristocrac­ia local. O que já então sobrava de sua sociedade imaginada fica evidente em seu próprio depoimento marcadamen­te pessimista: “Até agora, cometi a loucura de esperar dos homens algo que não reações humanas. Pensei que poderiam se conduzir segundo o Evangelho. O resultado nos mostra que, fazendo pouco do Evangelho, querem ser coagidos pela espada e pelas leis”.

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