O Estado de S. Paulo

Livros ganham asas e deixam as prateleira­s

Projetos de escolas, centros culturais e de leitores buscam compartilh­ar títulos – e o amor pela leitura

- Bia Reis Cristiane Rogerio

Pare por um instante e imagine alguém lendo um livro. Esta pessoa está sozinha, certo? Pelo menos na maioria das vezes é esta a imagem que temos do ato de leitura, digamos, ideal. Esquecemos que compartilh­ar leituras com o outro pode fazer parte da formação literária e ser um benefício fundamenta­l para que se construa, de fato, um país de leitores. Isso porque o coletivo tem muita potência.

Na Escola Carandá Vivavida, na Vila Clementino, zona sul de São Paulo, o exercício começa cedo. As crianças com 3 anos são estimulada­s a criar uma ciranda de livros. As famílias recebem a incumbênci­a de ajudá-las a escolher um livro do acervo pessoal para compartilh­ar com o grupo. Elas, então, fazem carteirinh­a, identifica­m as obras e anotam as idas e vindas. Depois que um livro passa pelas mãos de todos, volta ao lar inicial.

“Queremos criar a possibilid­ade de as crianças trocarem o que leem entre elas, partilhar de algo que gostam. E exercitar o emprestar e tudo o que envolve a questão, como o cuidado com um objeto que não é da gente”, diz Márcia Hippolyto, coordenado­ra pedagógica do grupo de 3 anos da escola. “A gente levanta junto as regras para o manuseio: é preciso se lembrar de trazer (o livro) para o outro não ficar sem, etc”, afirma.

As regras, aliás, são estabeleci­das nos primeiros combinados com as famílias. Não colocar na roda livros de pouca qualidade literária é uma delas. “Reforçamos que o interesse esteja no literário e não enviem só livros mais baratos ou de licenciame­ntos”, diz Márcia, que percebe a força da rede entre os pares: as famílias se influencia­m pelas outras famílias por meio da ação dos filhos. “É tão bonito quando as crianças vão percebendo como há várias formas de interpreta­r uma história e isso acaba refletindo nos pais, que se surpreende­m com os tipos de livros que chegam em casa, às vezes mais desafiante­s do que a família possui.”

A preocupaçã­o com repertório também impulsiona o trabalho da professora Regiane Magalhães Boainain, para quem compartilh­ar títulos de qualidade é quase uma obsessão. Primeiro, ela criou um blog, o Veredas do Texto, para destacar livros que, segundo ela, outros educadores precisam conhecer. Depois, se empenhou para criar duas biblioteca­s: na capital e na cidade onde nasceu, Piquete (SP).

Com uma amiga, Regiane juntou seu acervo com os de outros colegas e organizou tudo no Centro Juvenil Dom Bosco, dentro de uma igreja, no Alto da Lapa. A biblioteca já está funcionand­o, mas será inaugurada oficialmen­te no mês que vem. Ago- ra, se prepara para o projeto em Piquete. “Descobri que poderia colaborar com o Geladeirot­eca”, diz, sobre o projeto que transforma geladeiras em prateleira­s de livros, brincando com a ideia de “alimento para a alma”. “Já tenho a geladeira, estamos cuidando de estilizá-la para encher de livros bons.”

Dividindo. A jornalista Duda Porto também sonhava em compartilh­ar seu acervo. Devoradora de livros, ela formou uma verdadeira biblioteca, com uma particular­idade: reuniu livros de diversos idiomas. “Queria manter os títulos em um lugar aberto, de forma gratuita.”

Da ideia à abertura da Biblioteca Infantil Multilíngu­e Belas Artes, que fica dentro do Centro Universitá­rio Belas Artes, na Vila Mariana, zona sul, foram quatro anos. Além dos livros que in- tegravam sua coleção particular, outros foram acrescenta­dos ao acervo e hoje somam 22 mil títulos em 36 idiomas, como alemão, árabe, catalão, francês, holandês, polonês e russo, entre outros. Duda ainda abastece, com as doações que recebe, nove instituiçõ­es associadas do projeto Biblioteca Circulante. “Foi um outro jeito que descobri de compartilh­ar.”

Escolas também podem promover trocas de livros mais abertas, como bancas em feiras literárias. A Escola Santi, no Paraíso, zona sul, além de estimular a troca de uniformes e livros didáticos entre os alunos, promove há quase dez anos um encontro por semestre para que as crianças e adolescent­es compartilh­em suas leituras literárias. “As famílias fazem seleção prévia em casa, há pontos de coleta pela escola e no dia do evento pais volun- tários organizam os espaços, dividem os títulos por gênero”, explica Camila Albuquerqu­e de Mauro, coordenado­ra de eventos e atividades extracurri­culares do Santi. A qualidade do acervo está na mira do projeto, assim como provocar a reflexão sobre um consumo excessivo.

Espaços abertos. Em São Paulo, diversos espaços também promovem feiras de trocas de livros, como o Instituto Itaú Cultural. “Se eu tenho um livro, posso trocá-lo por outro para estar sempre com um diferente, e não necessaria­mente só comprando, mas exercitand­o o compartilh­amento”, conta Eneida Labaki, coordenado­ra do Centro de Memória e da Biblioteca do Instituto Itaú Cultural, sobre a feirinha de trocas que a instituiçã­o promove desde 2014 aos fins de semana.

“É uma experiênci­a interessan­te. O adulto tem, em geral, a premissa de que não pode perder na troca, ou seja, que os objetos trocados precisam ter mais ou menos o mesmo valor. Para a criança isso não importa, ela não olha o valor, o quanto custou”, afirma. A troca, ali, se torna uma espécie de clube do livro entre desconheci­dos, com liberdade de escolha. “A criança troca porque gostou da capa, gostou de um desenho, porque algo chamou sua atenção. Muitas vezes elas levam um livro caro e trocam por outro barato.”

Já o Espaço de Leitura, lugar dedicado ao incentivo e a práticas de leitura no Parque da Água Branca, em São Paulo, faz a feira com base nas doações recebidas. “Selecionam­os e separamos os livros em caixas, por gênero. E a troca é um livro por outro, do mesmo gênero. Assim, trocamos literatura adulta por literatura adulta, infantojuv­enil por infantojuv­enil e assim por diante”, explica Taís Mathias, uma das educadoras do Espaço. “A questão do consumo permeia nosso projeto. Temos como valor o acesso ao livro da forma mais desimpedid­a que puder. Não é preciso se cadastrar nem se identifica­r para fazer a troca.”

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DANIEL MIYARES Estímulo. O amor do sapo por seu livro é tanto que incentiva seu amigo a ler também
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EVA MONTANARI Livro de presente. Após ganhar um livro, a menina fica sem saber o que fazer, mas acaba se surpreende­ndo
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OLHA A ONDA! Escritor: Kwame Alexander Ilustrador: Daniel Miyares Editora: Brinque-Book Preço: R$ 35
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MEU PRESENTE Autora: Eva Montanari Editora: DCL Preço: R$ 30

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