O Estado de S. Paulo

Tributação dos ausentes

- GUSTAVO H.B. FRANCO

Entre as leis econômicas mais importante­s e menos conhecidas está a que afirma que Nelson Rodrigues estava errado e que as unanimidad­es não são burras. Explico: quando se trata de acordos econômicos (e políticos) as decisões são quase sempre por unanimidad­e entre os presentes, eis a sutileza que muda tudo.

Assim são os acordos parlamenta­res, os cartéis e os pactos sociais.

O principal defeito desses arranjos é que todos são construído­s com o intuito de espetar a conta em alguém que não faz parte da conversa. Alguém como o contribuin­te ou o consumidor, um interesse difuso e diluído, que raramente se vê representa­do nos conchavos e acordos feitos em Brasília.

Esta é uma das grandes doenças de nosso tempo, a tributação do ausente, por conta dos falsos consensos.

No decorrer do tempo, Brasília desenvolve­u uma rara habilidade nesse assunto, e sempre exibindo em sua defesa uma unanimidad­e (ou ao menos uma maioria) apenas aparente e nada representa­tiva.

O exemplo número um é a inflação, sabidament­e, um imposto sobre o pobre, cobrado sem que tenha sido autorizado pelos devidos ritos legislativ­os e pelo qual ninguém se responsabi­liza. Os senhores parlamenta­res entram em acordo sobre despesa e receita, a primeira muito maior que a segunda, e o Poder Executivo fecha a conta pintando pedaços de papel que as pessoas são obrigadas a aceitar em pagamento por mercadoria­s e serviços.

Antes de 1994 se descrevia esse tipo de dinâmica social como “conflito distributi­vo”, cuja solução era proporcion­ada pelos recursos gerados pela inflação, que funcionava como uma tributação do ausente, o excluído do sistema financeiro, o indefeso diante da inflação.

Depois de 1994, e sobretudo depois da Nova Matriz, ficou claro que estamos diante de um outro tipo de conflito distributi­vo, aquele onde a tributação recai sobre outro ausente, ainda mais vulnerável, as crianças.

Como funciona?

A dinâmica orçamentár­ia é a mesma da época da inflação, só que o déficit, ou o rombo, para usar o termo técnico, é coberto por dívida, não mais com papel pintado. Faz toda a diferença pois, para usar uma daquelas verdades monótonas de que é feita a ciência econômica, a dívida de hoje é o imposto de amanhã.

Ou seja, a dívida pública é uma espécie de imposto sobre a herança, ou um legado de novos impostos que deixamos para os nossos filhos.

Novamente estamos tributando um ausente, por miopia ou vilania mesmo, como se vê com clareza no debate sobre a Previdênci­a.

As aposentado­rias são maiores que o permitido pelas contribuiç­ões, de tal sorte que há um déficit que é coberto com dívida, e/ou com outros impostos (sobre a renda e sobre o faturament­o das empresas) que faltam para cobrir outras atividades do Estado.

Há, portanto, um novo conflito distributi­vo em operação, e sua natureza é intergener­acional: velhos explorando os jovens, seus próprios descendent­es. O que era um imposto sobre o pobre, a inflação, agora, se transformo­u em uma contribuiç­ão a ser paga pelas crianças.

Este País não devia ser descrito como cordial.

Mas, recentemen­te, uma CPI sobre a Previdênci­a concluiu que não há déficit no sistema previdenci­ário brasileiro. Isso me faz lembrar que nunca hou-

ve uma CPI da inflação, a maior e mais duradoura desgraça econômica autoinflig­ida que o País já experiment­ou. Para ambas as situações, no Parlamento, há evidente intuito de negação, possivelme­nte a manifestaç­ão de um direito constituci­onal legítimo, o princípio do “nemo tenetur se detegere”, ou o direito de não produzir prova contra si mesmo.

Quem sentaria no banco dos investigad­os na CPI da inflação (além dos economista­s heterodoxo­s, inocentes úteis de um processo social perverso) senão os senhores e senhoras que fazem as leis, inclusive orçamentár­ias, e o déficit?

Depois desta CPI da Previdênci­a, ouvi uma oportuna sugestão de que deveríamos agora iniciar uma outra para investigar os atentados à matemática, ou sobre as razões pelas quais o Brasil permanece sendo o país do futuro que nunca chega.

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMEN­TOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS

O contribuin­te ou consumidor raramente é visto nos conchavos feitos em Brasília

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