A memória obstinada de Patricio Guzmán
Documentarista chileno esteve no Brasil, deu curso e lançou livro
O documentarista chileno Patricio Guzmán teve passagem notável por São Paulo. Aqui permaneceu por 15 dias, de 5 a 20 de outubro. Ao longo dessas duas semanas, assistiu a uma retrospectiva (quase) completa de seus filmes, deu um curso de dez aulas para jovens cineastas e estudiosos, participou de três encontros com o público e lançou seu livro Filmar O Que Não Se Vê (Edições Sesc), no qual descreve seu método de trabalho.
Por coincidência, durante sua estada paulistana, viabilizada pela iniciativa do Instituto Vladimir Herzog e o Cine Caixa Belas Artes, foi também lançado, pelo Instituto Moreira Salles, o DVD de uma de suas obras-primas, O Botão de Pérola ( leia texto ao lado).
Essa imersão na obra como no pensamento de Guzmán foi uma rara oportunidade para o público paulistano. Poucas vezes se viu um criador consagrado no mundo todo se dispor a dar um curso de 30 horas, no qual revelou, de maneira muito generosa, os segredos da ferramenta cinematográfica que construiu para si.
Guzmán tem muito clara a noção de que sua obra centra-se num acontecimento histórico traumático, do qual fez parte e foi vítima – o golpe militar de 11 de setembro de 1973 que depôs o presidente Salvador Allende e instaurou a ditadura militar de Augusto Pinochet.
Guzmán morava na Espanha quando Allende assumiu e voltou para seu país para registrar o que lá acontecia. O resultado foi O Primeiro Ano (1972), filme apreendido pela ditadura e que se julgava desaparecido. “Ano passado foi encontrada uma cópia, que agora está em restauro e será relançada”, disse.
Sua experiência com o governo Allende e com o golpe está registrada no monumental A Batalha do Chile, trilogia composta por três títulos, A Insurreição da Burguesia (1975), O Golpe de Estado (1977) e O Poder Popular (1979). A história do filme é um épico à parte. Logo após o golpe, as filmagens foram interrompidas e os negativos fica- ram escondidos na casa de um tio de Guzmán, Ignácio – a história está contada em Chile, a Memória Obstinada (1997). Saíram depois pela mala diplomática em um barco sueco. Guzmán, que havia partido para o exílio depois de libertado (ficara preso no tristemente célebre Estádio Nacional), foi recebê-los e os montou em Cuba.
Esse épico, considerado uma das maiores obras do cinema político, registra, de forma não cronológica, as etapas do governo Allende e do golpe. Na primeira, a maneira como o regime foi sendo solapado com o lockout dos caminhoneiros, as manifestações crescentes da classe média e o apoio dos Estados Unidos à oposição. O segundo, o mais dramático, é o golpe propriamente dito, com as cenas do bombardeio do Palácio de la Moneda, onde morreu Allende. O terceiro é o mais paradoxal, pois mostra a força organizada dos setores populares de sustentação de Allende, incapazes, no entanto, de resistir aos ataques e às divisões da esquerda.
Como se tratava de registrar um processo “a quente”, Guzmán conta que adotou técnicas do chamado “cinema direto” em A Batalha do Chile. Contava com uma equipe pequena e ágil. Filmava como podia e tentava extrair a essência de cada depoimento. Seu câmera, Jorge Muller, “el Flaco”, foi preso e assassinado pela ditadura.