Protegido, mas nem tanto
Lei protege a propriedade, mas há exceções, como débitos condominiais e de financiamento
Legislação preserva o único
bem de família, mas há exceções que preveem a execução da propriedade; dívidas de financiamento e débitos condominiais são casos mais comuns
O número de ações protocoladas no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo por falta de pagamento da taxa de condomínio cresceu 190, 9% no acumulado deste ano em comparação com mesmo período de 2016, aponta levantamento do Sindicato da Habitação (Secovi-SP). Segundo especialistas, o aumento tem duas razões principais: a crise econômica e o novo Código de Processo Civil, que tornou o procedimento de cobrança mais rápido.
Antes, a apreensão do imóvel inadimplente podia demorar anos. Com as novas regras, válidas há cerca de um ano, o atraso abre possibilidade de execução imediata. “A ação já é aberta com pedido de penhora, então os condôminos estão mais atentos, e os síndicos, mais propensos a recorrer à Justiça ”, diz Jaques Bushatsky, advogado e membro do Conselho Jurídico do Secovi-SP.
O débito condominial é apenas uma das exceções à Lei 8.009/90, que protege o chamado bem de família. A preservação desse bem, que deve ser um único imóvel da entidade familiar, quer dizer o seguinte: ainda que o proprietário esteja com dívidas e não tenha outros patrimônios, esse imóvel não pode ser penhorado para quitá-las.
Existem, porém, situações em que a propriedade não está resguardada. É o caso de dívida por financiamento do próprio bem ou hipoteca, atraso de pensão alimentícia e de impostos que incidem sobre o imóvel, como IPTU. Também o fiador de uma locação imobiliária e um condenado criminalmente que tenha de pagar danos morais podem perder a casa.
Na maioria dos casos, organizar-se com as finanças tende a evitar a perda. Marcelo Milech, da Associação Brasileira de Planejadores Financeiros, aconselha uma reserva de 10% dos rendimentos mensais para situações inesperadas, como o desemprego. “É bom fazer uma poupança forçada, porque o seguro desemprego não é suficiente para manter as contas em dia até a recolocação no mercado.”
Denise (nome fictício), de 53 anos, foi pega de surpresa quando há dois anos viu sua renda familiar diminuir significativamente. Ela e o marido, representante comercial, perderam o emprego na mesma época. A secretária conseguiu um novo posto, mas com salário menor.
Depois de um ano, o casal precisou se desfazer de um de seus apartamentos para lidar com gastos fixos, como a taxa condominial de R$ 700 do prédio onde viviam, no Butantã. Não foi suficiente. O saldo devedor continuou a crescer, eles foram morar com o pai de Denise e alugaram a casa onde viviam. Mas aí a inadimplência já havia se tornado assunto jurídico.
“Tentei negociar, só que a dívida estava muito maior, com multa, juros”, conta. Seu maior erro, reconhece, foi ter procurado a administradora tarde, com um ano e meio de débitos acumulados. Denise também só acionou um advogado após receber a notícia da penhora. Dois meses mais tarde, o apartamento de 82 m² avaliado em R$ 600 mil foi a leilão.
Antecipar-se e procurar o condomínio ou a instituição financeira para comunicar o problema é a melhor opção, diz Milech. “Vejo que o credor tende a ser mais flexível com quem se manifesta voluntariamente e mostra que, apesar de impossibilitado no momento, pretende quitar a dívida.”
Se o condômino não consegue arcar com a mensalidade inteira, pode sugerir pagar a metade e negociar o restante.
O presidente da Associação das Administradoras de Bens Imóveis e Condomínios (AABIC), Rubens Elias Filho, defende uma postura conciliadora. “Deve haver negociação nos primeiros três meses de atraso,
mas a lei permite que no dia seguinte ao vencimento o condomínio peça a penhora do bem.”
Para inadimplência com financiamentos, a execução é ainda mais rápida. Omotivo é que, neste caso, não se trata de penhora, mas de execução extrajudicial. “Por contrato, a instituição financeira pode leiloar o imóvel assim que o atraso for identificado, mas ela geralmente espera cerca de 90 dias”, diz Vinícius Costa, presidente da Associação Brasileira dos Mutuários da Habitação (ABMH).
Controvérsias. A lei do bem da família tem pontos polêmicos e outros pouco conhecidos, como a possibilidade de penhora em caso de atraso na pensão alimentícia. Se um pai não cumpre o dever com o filho, ele poderá perder o imóvel, mesmo que a aquisição tenha ocorrido em outro casamento e outra mulher seja a coproprietária.
“Ela receberá 50% da venda, porque sua parte não pode ser atingida, mas não poderá fazer nada em relação à penhora”, alerta Paulo Sérgio Pereira, sócio-proprietário do escritório Machado & Pereira Advogados.
Professor da Escola Paulista de Direito, Flávio Tartuce levanta outra questão: é justificável a impenhorabilidade de uma mansão, por exemplo? Para ele, deveria haver um teto no valor do bem, já que a ideia da lei é preservar condições mínimas de renda do grupo familiar.
Tartuce defende, ainda, que a possibilidade de o fiador ter seu único imóvel confiscado, enquanto o locatário inadimplente está protegido, é inconstitucional ( ler quadro abaixo).
O advogado Luciano Mollica, mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), afirma tratar de “uma decisão consciente” do Judiciário. Segundo ele, a previsão legal dá segurança ao mercado de locação e beneficia, em última instância, os próprios locatários.
Se não houvesse a exceção, diz, somente seriam aceitos fiadores que têm pelo menos dois imóveis. “É a preservação da garantia mais barata e usual que se tem no mercado.”
As execuções por inadimplência de IPTU tendem a ser mais demoradas. De acordo com Mollica, a partir do dia em que se constata o atraso, o município tem até cinco anos fazer a inscrição da dívida. Depois, mais cinco para a execução. “Mas pode ocorrer também num prazo muito mais curto, depende da agilidade dos promotores locais.”