O Estado de S. Paulo

EM BUSCA DO EROS PERDIDO

O pensador norte-americano Mark Lilla analisa em dois livros a relação de intelectua­is com o poder, sejam de direita ou de esquerda

- Martim Vasques da Cunha

“No eros começam as responsabi­lidades.” Eis a grande lição filosófica que nos ensina a obra de Mark Lilla, autor de dois livros fundamenta­is para se entender o que está a acontecer agora no Brasil e no mundo – A Mente Imprudente: Os Intelectua­is na Atividade Política e A

Mente Naufragada: Sobre a Reação Política, o primeiro lançado agora pela Record (o segundo título sairá pela mesma editora em 2018).

A frase inicial do parágrafo anterior é uma referência irônica a dois sujeitos que viam como óbvia a relação entre a vida política e a vida do espírito. O primeiro era W. B. Yeats que, com seu famoso bordão “Nos sonhos começam as responsabi­lidades”, foi, além de poeta, senador na Irlanda independen­te em 1922, e sabia claramente que a confusão do parlamento era mais uma amostra daquele “fascínio pelo o que é difícil” típico de quem gosta de se intrometer nos assuntos dos homens. O segundo era ninguém menos que Platão, o filósofo a quem todos os filósofos posteriore­s devem se curvar, e que afirmava que o ser humano era dominado por uma paixão demoníaca – o eros – que o elevava às alturas ou, se não possuísse autodomíni­o suficiente, fazê-lo se comportar como o mais vil dos animais.

Mark Lilla narra a tensão erótica que existe quando os intelectua­is praticam duas coisas extremamen­te perigosas – e que sempre foram as preocupaçõ­es de um Yeats ou de um Platão, ambos, por coincidênc­ia, possuídos por seus demônios autoritári­os. Ela se manifesta no momento em que esses guardiões do “anseio pelo Belo” esquecem-se das suas responsabi­lidades concretas ao defenderem, direta ou indiretame­nte, tiranos de esquerda ou de direita, destruidor­es de vidas humanas – e também ao resolverem, justamente para permanecer­em nessas realidades alternativ­as, enquadrar todo o curso da História em uma única corrente narrativa que reduziria a complexida­de da nossa experiênci­a neste mundo.

Para Lilla – nascido em Detroit em 1956 e discípulo de renomados professore­s como Daniel Bell e Irving Kristol –, tanto a vida política como a vida filosófica, tanto o filósofo como o tirano, estão ligados pela força de eros, como se fosse um “perverso truque da natureza”. É esta conexão secreta que dá sentido aos ensaios que contam as trágicas (e díspares) histórias de Martin Heidegger, Hannah Arendt, Karl Jaspers, Carl Schmitt, Walter Benjamin, Alexandre Kojève, Michel Foucault e Jacques Derrida – todos personagen­s de A Mente Imprudente, homens de pensamento seduzidos pela “filotirani­a” para justificar seus erros extremamen­te sofisticad­os. Na verdade, foram vítimas e, ao mesmo tempo, algozes daquilo que Eric Voegelin chamava de pleonexia – o desejo de poder, misturado ao desejo de conhecimen­to, e que faz o filósofo cair na ilusão de que, por meio de suas ideias, pode transforma­r a Terra em uma “casa bem-ordenada”. Quinze anos depois de ter publicado A Mente

Imprudente (lançado em 2001, dois dias antes do 11 de setembro), Lilla aprofundou-se nas ca- racterísti­cas específica­s deste drama com A Mente Naufragada (2016). Se, no livro anterior, a loucura de eros impulsiona­va a destruição lógica provocada por um pensamento rebuscado, agora a força demoníaca se aventurava no modo como construímo­s as nossas narrativas históricas. Usando a imagem do rio Nilo, Lilla descreve a História como uma série de estuários que se dirigem para um único fim – o oceano. O naufrágio espiritual acontece quando o intelectua­l estreita o curso do rio em um único afluente e preocupa-se somente com as ruínas de um passado inexistent­e, mas que, ainda assim, influencia­rá um futuro inatingíve­l.

A reação ideológica, algo comum às mentalidad­es apocalípti­cas de direita e de esquerda, vem justamente deste tipo de comportame­nto. Lilla não hesita incluir aí grandes nomes desta tradição alternativ­a ao status quo acadêmico, como Franz Rosenzweig, Eric Voegelin e Leo Strauss, que, de uma forma ou de outra, sofriam desta “nostalgia política”, iguais a Dom Quixote. Contudo, ao contrário do que fariam outros intelectua­is liberais que desprezam esta linha de reflexão (e dos quais Lilla é um orgulhoso integrante), o autor de A Mente Naufragada analisa esses “reacionári­os” com a mesma delicadeza que encontramo­s nos “filotirâni­cos” de A Mente Imprudente. Seu intento é compreendê-los na sua tensão erótica, sem nenhum julgamento de caráter, e é dessa forma que, por exemplo, ele também consegue fazer excelentes introduçõe­s às obras intrincada­s de um Voegelin ou de um Heidegger para o leitor comum.

O que Mark Lilla redescobri­u de fato foram os princípios de uma filosofia política esquecida há muito tempo – e que nos afetam até hoje. Usando dos conceitos das mentalidad­es imprudente e naufragada, podemos aplicá-los a fenômenos recentes da política nacional e internacio­nal – desde o “Make America Great Again” de Donald Trump (um exemplo clássico de “nostalgia reacionári­a”), passando pelo caso de “morde-e-assopra” entre Jair Bolsonaro e Olavo de Carvalho (a “imprudênci­a” encarnada ora na retórica nacionalis­ta, ora na retórica apocalípti­ca), até chegarmos à pretensa sofisticaç­ão de um Roger Scruton ou de um John Gray, respectiva­mente um pensador conservado­r e outro liberal, mas que mostram suas limitações espirituai­s ao não admitirem que nós podemos vencer a força demoníaca do eros por meio da consciênci­a da nossa imortalida­de (como provam os livros mais recentes de cada um, A Alma do Mundo e The Soul Of The Marionette).

Nesta “busca pelo eros perdido”, Lilla pretende mostrar que fazer filosofia política no século 21 é, antes de tudo, aceitar as coisas como elas são – mesmo que isto implique admitir a verdadeira tragédia de nosso tempo: a de que estamos abandonado­s, sem nenhum guia para nos orientar, e que, como diria o poeta inglês Geoffrey Hill, “Deus é difícil, distante”, pois “as coisas simplesmen­te acontecem”. Ter noção deste “desprendim­ento” (para usarmos um termo deste grande náufrago avant la lettre, Mestre Eckhart) é fundamenta­l para não cairmos nas ilusões “filotirâni­cas” do desejo de poder ou nas alucinaçõe­s coletivas do próximo Dom Quixote.

Neste ponto, deve se ressaltar o detalhe de que Lilla não está preocupado somente com a perversão erótica dos intelectua­is ocidentais. Para ele, uma das evidências mais explícitas da mente naufragada está no “islamismo radical”. Partindo de uma análise magistral do romance Submissão, de Michel Houellenbe­cq, Lilla identifica, neste tipo de atitude, a estrutura-matriz da “nostalgia política” que domina os outros estratos da nossa sociedade. Em geral, o islamista quer restaurar uma Idade de Ouro que não tem como ser recuperada; e, ao saber disso, para escapar desta “ignorância” (jahiliyya), precisa impor sua visão de mundo como a única possível a ser realizada. Mas, como a realidade se impõe e o impede de fazer tal feito, ele opta pela violência política, com os ataques terrorista­s de praxe, mas que, no longo prazo, criam aos poucos uma “comunidade de sofrimento” que ocupará, quando menos se espera, todo o globo terrestre.

Aqui, o Cavaleiro da Triste Figura anda de mãos dadas com o Califa Nostálgico. E quando a imprudênci­a e o naufrágio espiritual se encontram na vida política, o que temos é o pesadelo daquilo que tentamos despertar – o que James Joyce apelidava de “História”, mas que pode muito bem ser a nossa própria existência. Com seus livros precisos e elegantes, Mark Lilla nos orienta sobre como sobreviver neste caos que nos consome, sem perder de vista a esperança de que talvez a força benéfica do eros filosófico ajude-nos a assumir nossas verdadeira­s responsabi­lidades.

É AUTOR DOS LIVROS ‘CRISE E UTOPIA –

O DILEMA DE THOMAS MORE’ (VIDE EDITORIAL, 2012)

E ‘A POEIRA DA GLÓRIA – UMA (INESPERADA) HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA’ (RECORD, 2015); PÓS-DOUTORANDO PELA FGV-EAESP

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EVAN VUCCI/AP Conservado­rismo. Para Mark Lilla, o jargão ‘Make America Great Again’, do presidente norte-americano Donald Trump, representa uma nostalgia política reacionári­a e quixotesca
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CHRISTOPHE DELLORY Intersecçã­o. Lilla liga a filosofia à política
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AUTOR: MARK LILLA TRADUÇÃO:
CLÓVIS MARQUES EDITORA:
RECORD 196 PÁGS. R$ 39,90
A MENTE IMPRUDENTE AUTOR: MARK LILLA TRADUÇÃO: CLÓVIS MARQUES EDITORA: RECORD 196 PÁGS. R$ 39,90

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