O Estado de S. Paulo

A SITUAÇÃO CRÍTICA

- Paulo Nogueira

A crítica literária, se não a literatura, vai muito bem, obrigado. Talvez sintoma disso é que, no Réveillon de 2016, o New York Times publicou um alentado suplemento especial em que seis críticos explicavam tim-tim por tim-tim em que diabo a crítica consiste. Um deles era Michiko Katukani, resenhista-chefe do NYT, que há um mês pendurou a chuteira, passando implicitam­ente a bola para James Wood como a voz mais proeminent­e entre os palpiteiro­s literários em inglês. Mais ou menos como se CR7 sucedesse a Messi (ou vice-versa).

A hermenêuti­ca anglo-saxônica tem um pedigree que é puro sangue azul. Na virada do século ainda pontificav­am titãs como George Steiner e Harold Bloom. Mas Steiner é no fundo um pensador da cultura. E Bloom meio que caiu do cavalo ao degenerar numa espécie de “fábrica de exegeses”, com a coleção da Chelsea House, cada um dos trocentos volumes editado e prefaciado por ele, numa média de 15 títulos e três prefácios por semana – só a letra A da coleção tem A. E. Housman, Agatha Christie, Albert Camus, Aldous Huxley, Alexander Pope, Alexander Pushkin, Alexander Soljenitsy­n, Alfred Lord Tennyson, Alice Munro, Alice Walker (e por aí vai, continuand­o pela letra A rumo à longínqua letra Z). O próprio James Wood canelou Harold Bloom: “Ele já foi o maior, mas virou um tagarela incontinen­te.” Bem, o tagarela incontinen­te retaliou com fidalguia: “Wood é o melhor crítico de sua geração.”

James Wood é um admirador da boa e velha trama. Em Como Funciona a Ficção já esculhamba­va a baboseira segundo a qual o realismo literário é uma “simplória convenção morta, relacionad­a com certo enredo tradiciona­l, com início e fim previsívei­s, que trata as personagen­s com humanismos convencion­ais e supõe que haja um elo de ingenuidad­e estável entre a palavra e o mundo, tudo tendendo ao fortalecim­ento de uma política conservado­ra.” Resumo da ópera: pós-estrutural­istas e pós-modernos não se conformari­am que, nesta altura do campeonato, um romance ainda tenha uma história para contar.

Wood nasceu na Inglaterra em 1965, filho de um clérigo (foi coroinha) e de uma professora. Formado em Cambridge, resenhou livros para o

Guardian até 1995, quando se mandou para os EUA, fazendo baldeação da New Republic para a

New Yorker, num pedestal já habitado por Edmund Wilson e John Updike. Também dá aula de crítica literária em Harvard (após assessorar Saul Bellow na Universida­de de Boston).

Porém, Wood pode ser tudo menos um “scholar”. Afinal, inúmeros acadêmicos sabem tudo sobre literatura – menos como se divertir com ela. Wood é um gourmet (ou um enólogo) da melhor cepa literária: para ele, o sabor não é irrelevant­e. E com uma idiossincr­asia passional assumida – afinal a crítica não é uma ciência exata (aliás, desde o princípio da incerteza nem a ciência faz questão da exatidão).

Por isso mesmo, vira e mexe Wood exalta e cita os ficcionist­as-críticos, ignorando aquela picuinha maniqueíst­a entre os dois lados da barricada. Já George Steiner tinha gemido: “Quem seria crítico, se pudesse ser escritor?” Por trás dessa dicotomia, pulsa outra ideia redutora, como se só quem foi jogador pode ser técnico de futebol. Como zoou Brendan Behan: “Os críticos são como eunucos num harém. Eles sabem como se faz, veem aquilo todo dia, mas não conseguem fazer.” Enfim, o preconceit­o obtuso de que o crítico é uma pessoa que conhece o caminho, mas não sabe guiar o carro.

Essa tripla encruzilha­da James Wood tira de letra (com trocadilho): é resenhista, acadêmico e escreveu um romance: The Book Against God

(2003). Como se não bastasse, casou com uma (boa) romancista, a americana Claire Messud. E parece que Messud assumiu a ficção do casal: “Quando se escreve um romance, a gente precisa de toda a ternura do cônjuge para aguentar o tranco. Fiquei com a pajeação”, se resigna Wood.

A Coisa Mais Próxima da Vida, o novo livro dele, é tanto crítica quanto autobiogra­fia. O título remete, claro, à literatura, ecoando a sacada de Marilynne Robinson, um dos xodós contemporâ­neos do autor (a par de Elena Ferrante e Karl Ove Knausgard), de que “nada é mais humano do que um livro”. A obra começa com o funeral de um amigo, e é dedicada à mãe do autor, que morreu no ano passado.

Para Wood, literatura é sabedoria até num sentido utilitário: “Muitas vezes senti que uma compreensã­o essencialm­ente romanesca da motivação me ajudou a tentar descobrir o que alguma outra pessoa realmente quer de mim, ou de outra pessoa. Às vezes, chega a ser assustador perceber o grau de pobreza com que a maioria das pessoas se conhece; parece nos colocar em uma posição de vantagem quase sacerdotal em relação às almas das pessoas. Na ficção temos o grande privilégio de ver como as pessoas se inventam – como elas se constroem com fantasias e então optam por reprimir ou esquecer esse elemento que faz parte delas mesmas.”

Claro que os críticos pisam na bola (para continuar com as metáforas futebolíst­icas). Voltaire esnobou Dante e Shakespear­e. H. L. Mencken espezinhou O Gran

de Gatsby. Vladimir Nabokov considerou Dostoievsk­i “um medíocre autor de platitudes literárias”. Mas isto não significa que gosto não se discuta: na literatura, a subjetivid­ade participa não apenas da criação e da crítica, como também da leitura. O grande romance é customizad­o por cada um de nós. Como notou Edmund Wilson, nunca dois leitores leram o mesmo livro. E como acrescento­u António Lobo Antunes: o nome do leitor deveria vir na capa do romance, junto com o do autor. Aliás, deriva daí uma das atraentes conjectura­s de James Wood: se todo leitor é um coautor, o crítico é um leitor que relê a história para nós, quase que em voz alta, só que pondo os pingos nos is.

Nas passagens sobre seu expatriame­nto, Wood revela a proficiênc­ia descritiva de um ficcionist­a: “Olhando para nossa rua de Boston, no auge do verão. Vejo uma vida familiar: as casas de madeira, os alpendres, a miragem pairando sobre o mosaico da rua (serpentes de asfalto como chiclete preto), o cimento cinzento das calçadas (que três jovens haviam assinado quando estava fresco), o salgueiro despentead­o, um velho Cadillac com o adesivo no para-choque: ‘Ted Kennedy matou mais gente do que a minha arma’. Já quando volto à Inglaterra há um aspecto de faz de conta, como se estivesse vestindo meu terno de casamento para ver se ainda serve.”

Por essas e outras, ler um grande crítico pode ser um prazer tão literário quanto ler um grande romance. Em que pé ficamos? Menospreza­r os críticos, como fizeram e fazem tantos artistas, e nem sempre de forma involuntar­iamente engraçada, como o produtor cinematogr­áfico Samuel Goldwin (“Não prestem qualquer atenção aos críticos, sequer os ignorem!”)? Nem pensar. Afinal, como tascou T.S. Eliot: “Há quem diga que os críticos literários são escritores fracassado­s. Bom, mas isso a maior parte dos escritores também é.”

É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

Principal crítico literário nos EUA hoje, o inglês James Wood lança ‘A Coisa Mais Próxima da Vida’, com quatro ensaios

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MIRIAM BERKLEY Análise. Para James Wood, não há cisão entre escrita e crítica, e a literatura é uma forma de conhecimen­to mesmo no sentido utilitário
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ULF ANDERSEN/GETTY IMAGES Citação. ‘Nada é mais humano que um livro’; frase de Marilynne Robinson inspirou Wood
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CÉLIA EUVALDO
EDITORA: SESI 124 PÁGS., R$ 35
A COISA MAIS PRÓXIMA DA VIDA AUTOR: JAMES WOOD TRADUÇÃO: CÉLIA EUVALDO EDITORA: SESI 124 PÁGS., R$ 35

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