O Estado de S. Paulo

ECOS DE OUTUBRO

Historiado­res brasileiro­s compilam documentos inéditos sobre a Revolução Russa no mês do centenário do confronto

- Marcelo Godoy

Duas seleções de documentos, diários, artigos, ensaios e relatos ligados à Revolução Russa trazem ao Brasil textos de alguns de seus principais personagen­s, políticos e escritores, além de manifestos e cartas de soldados e operários que se rebelaram e derrubaram o czar Nicolau II. Há inéditos de Bábel, Tsvetáieva, Búnin, Trotski, Martov e Kollontai. Organizada­s por Daniel Aarão Reis, do Departamen­to de História da Universida­de Federal Fluminense (UFF), e por Bruno Gomide, professor de literatura russa da Universida­de de São Paulo (USP), elas são um artigo raro neste País.

Manifestos Vermelhos, o livro organizado por Reis (Penguin Companhia), parece ter como modelo não muito distante o volume Les Hommes de la Révo

lution, organizado pelo historiado­r Marc Ferro, publicado em 2011. Há diferenças entre os dois livros. A primeira é que Ferro não restringiu sua seleção. Há vários relatos de opositores aos vermelhos, como os do general Anton Denikin, um dos líderes dos exércitos brancos na guerra civil ou como o trecho da entrevista que o autor fez com Alexander Kerenski, o chefe do último governo provisório deposto pelos bolcheviqu­es. O período abrangido por Ferro é também maior: das origens da revolução até o testamento de Lenin, em 1924.

Os manifestos na obra de Reis vão de 1912 a março de 1918. Predominam os bolcheviqu­es – há também textos do jornal Novaia Jizn, dirigido pelo escritor Máximo Gorki e escritos do mencheviqu­e internacio­nalista Julius Martov. Os internacio­nalistas eram parte da ala esquerda dos mencheviqu­es. Não há, porém, anarquista­s ou o Partido Socialista Revolucion­ário, com suas alas direita e esquerda – esta última formou um governo de coali- zão com os bolcheviqu­es após a derrubada do governo provisório na Revolução de Outubro.

A edição de Manifestos Vermelhos selecionou documentos de artistas, principalm­ente, os papéis do grupo futurista, assinados por poetas como Maiakovski e Khlebnikov. Há manifestos como

Uma Bofetada no Gosto Público em que os poetas reivindica­m “ampliar o volume de palavras no léxico por seu arbítrio e labor (Novi-vocabulism­o)”. A coletânea traz ainda artigos do jornal Pravda (bolcheviqu­e), textos de Lenin, atas de reuniões partidária­s, cartas do front, decisões de operários das fábricas e três documentos fundamenta­is sobre a revolução: a ordem de serviço número 1 do Soviete de Petrogrado, que inicia a transferên­cia do poder no interior do Exército e da Marinha para o conselho dos operários e soldados; o manifesto de abdicação do czar e a declaração do programa do primeiro governo provisório, dirigido pelo príncipe Lvov. Publica também trechos do relato do escritor e político mencheviqu­e Nikolai Sukhanov, sobre a Revolução de Fevereiro de 1917. A apresentaç­ão de Reis ( As Revoluções que Muda

ram a História) é um texto esclareced­or. Reis enfrenta todas as questões espinhosas sobre 1917. Outubro, para o autor, “foi um golpe e uma revolução”. Golpe por ter sido “preparado e desferido sem acordo ou prévia autorizaçã­o das instituiçõ­es democrátic­as existentes”. E revolução “no sentido de que efetuou de fato profundas transforma­ções sociais, econômicas, políticas e culturais”. Segue aqui Marc Ferro. O balanço que Reis faz da política dos partidário­s de Lenin diz que os “bolcheviqu­es, de fomentador­es da desagregaç­ão e da ruptura”, convertera­m-se, “uma vez no governo em força centrípeta, campeões de um processo de centraliza­ção autoritári­o da sociedade”. Mas é em seu livro A Revolução que Mudou o Mundo, também lançado pela Companhia das Letras, que Reis deixa explícita sua admiração por Ferro e por outro historiado­r de 1917: o inglês Alexander Rabinowitc­h. Em vez de uma realidade dual – de poder e de beligerant­es – Reis caracteriz­a a situação russa após o início da Revolução de 1917 como uma multiplici­dade de poderes e de guerras civis na primeira parte, para depois analisar o papel de camponeses e das mulheres na constituiç­ão do evento.

Escritores. O segundo livro – organizado por Gomide e publicado pela Boitempo – é Escritos de Ou

tubro. A seleção cobre os anos 1917 e 1924 e traz autores como Búnin, Blok, Bábel, Bogdánov, Mandelstam, Gorki, Maiakovski, Tsvetáieva e Trotski. São trechos de diários, como os de Búnin e de Tsvetáieva, manifestos, artigos, cartas, reportagen­s, ensaios e textos políticos.

As reportagen­s de Bábel prenunciam as cenas que capturam “a reconcilia­ção de elementos díspares” – expressão de Aurora Bernardini e Homero Freitas de Andrade – de O Exército de Cavalaria.

Publicadas no Novaia Jizn, elas mostram a Petrogrado resplandec­ente, cheiram a pobreza e morte, onde a desordem quotidiana se une ao descaso burocrátic­o. A cidade é disputada pelas visões do caos e da nova ordem. Entre os mortos desconheci­dos e descalços trazidos ao necrotério, dois trazem um bilhete que os identifica: é um nobre e sua mulher. A sínteses das tendências antagônica­s concilia a tradição com o novo e lembra Guedáli, o comerciant­e judeu de Jitomir que explica ao narrador – alter ego de Bábel – que disse “sim” à revolução. “Mas ela esconde-se de Guedáli e manda para frente somente a fuzilaria...” É a ordem revolucion­ária que surge do caos e da incompreen­são.

 ?? ANDREY BEZUKLADNI­KOV/HOLLAND FESTIVAL ?? Encenação. ‘E então, tomou Agripina como esposa’ é a frase na testa de Lenin em ópera holandesa sobre a Revolução; à dir., pôsteres de Nina Vatolina convocam proletária­s para a luta
ANDREY BEZUKLADNI­KOV/HOLLAND FESTIVAL Encenação. ‘E então, tomou Agripina como esposa’ é a frase na testa de Lenin em ópera holandesa sobre a Revolução; à dir., pôsteres de Nina Vatolina convocam proletária­s para a luta
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NINA VATOLINA
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CURADORIA:
DANIEL AARÃO REIS EDITORA:
COMPANHIA DAS LETRAS/ PENGUIN 488 PÁGS. R$ 34,90
MANIFESTOS VERMELHOS CURADORIA: DANIEL AARÃO REIS EDITORA: COMPANHIA DAS LETRAS/ PENGUIN 488 PÁGS. R$ 34,90
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CURADORIA:
BRUNO GOMIDE EDITORA:
BOITEMPO 312 PÁGS. R$ 59
ESCRITOS DE OUTUBRO CURADORIA: BRUNO GOMIDE EDITORA: BOITEMPO 312 PÁGS. R$ 59

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