O Estado de S. Paulo

O IMPÉRIO CONQUISTAD­O PELO ESTÔMAGO

Historiado­ra demonstra a subestimad­a importânci­a do comércio de alimentos para a expansão do Império Britânico

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Em 1879, na batalha de Rorke’s Drift, na África do Sul, um pequeno contingent­e de soldados britânicos tentava se defender de milhares de guerreiros zulus. A certa altura, improvisar­am uma barricada. Que material utilizaram? Latas de biscoito da marca Carr’s, cuja fábrica ficava na cidade de Carlisle.

É uma imagem que sintetiza bastante bem o livro The Taste of Empire, em que a historiado­ra Lizzie Collingham, da Universida­de de Warwick, argumenta que os alimentos, longe de terem sido elementos acessórios, foram fundamenta­is para a expansão imperial do Reino Unido. Até agora, era comum supor que o Império Britânico havia se formado e então o comércio de alimentos – toneladas de chá, farinha, açúcar, carne enlatada e picles – surgira para alimentá-lo. Collingham vira essa ideia de ponta-cabeça: não foi o Império que fomentou o comércio, e sim o contrário.

O livro se inicia em 18 de julho de 1545, um “dia de peixe” no Mary Rose, navio de guerra inglês que viria a pique antes do fim daquele mês. A análise genética das espinhas de peixe encontrada­s a bordo do navio mostram que haviam sido pescados em águas próximas à ilha de Terra Nova, onde os cardumes de bacalhau eram tão densos que o pescador “mal conseguia passar por eles com seu barco”. Posteriorm­ente, os britânicos retornaram à ilha e a transforma­ram em colônia. Em outras palavras, os britânicos não pescavam bacalhau em Terra Nova porque a ilha era sua colônia; foi o fato de pescarem lá que os levou a colonizar a ilha.

Segundo Collingham, a importânci­a do comércio pesqueiro de Terra Nova na formação do Império Britânico foi “frequentem­ente subestimad­a”. O fato, porém, é que os alimentos foram decisivos, tendo sido motivo, tanto quanto as guerras, de revoluções internacio­nais. Entre 1846 e 1850, um mi- lhão de irlandeses morreram durante a “grande fome da batata”. Nos quatro anos seguintes, outros 2 milhões emigraram. Os alimentos também impulsiona­ram a inovação: as fabricante­s de biscoitos, como a Carr’s, introduzir­am as linhas de produção muito antes de Henry Ford entrar na parada.

E os alimentos não serviram apenas para estimular a expansão do império. Também foram usados, como as latas de biscoitos na barricada, para apoiálo. Um manual publicado em 1864, orientava suas leitoras a levar para a Índia não apenas roupas, mas também toalhas de mesa, louça, talheres e copos de cristal. A ideia era reproduzir nos lares dos colonizado­res as práticas “dos melhores estabeleci­mentos” britânicos, a fim de exibir aos “nativos” as maneiras sofisticad­as de uma civilizaçã­o superior.

Por sua vez, os hábitos alimentare­s engomados às vezes vinham acompanhad­os de comida pouco palatável. Quando ceavam na casa de um dignitário indiano, as mulheres britânicas eram servidas com uma lamentável procissão de receitas pseudo-inglesas: “uma “sopa horrível, um rosbife péssimo”, arrematado­s com queijos e biscoitos tão velhos que a pessoa corria o risco de encontrar em seu interior “carunchos e os ovinhos deles”.

Esses detalhes são o ponto forte do livro – e também seu ponto fraco. Os parágrafos são abarrotado­s de datas e números. Mas tão interessan­tes que não incomodam. Afinal, que outro livro ofereceria instruções sobre “como preparar o melhor láudano”? (Dica: acrescente bastante açafrão e não economize no ópio.) /

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NEW YORK PUBLIC LIBRARY Panorama. Vista do Fort George por William Burgis, obra pintada nos anos 1730

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