O Estado de S. Paulo

A EPOPEIA DAS GÍRIAS

Lexicógraf­o Jonathon Green narra a história das expressões idiomática­s da língua inglesa e mapeia grandes transforma­ções dos tabus ao longo do tempo

- TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER

No século 18, Samuel Johnson caracteriz­ou seu ofício como o de um “inofensivo amanuense”. Apesar disso, não faltam lexicógraf­os capazes de escrever textos interessan­tes, divertidos e apaixonado­s sobre o trabalho que realizam. Dois bons exemplos são Kory Stamper, editora dos dicionário­s Merriam-Webster e autora de Word by

Word: The Secret Life of Dictionari­es e Jesse Sheid

lower, que já foi editor do Oxford English Dictio

nary e em The F-Word apresenta vasta e deliciosa compilação dos mais variados usos do palavrão mais “f...” da língua inglesa: fuck.

Mas a lexicograf­ia é, de fato, um trabalho paciente, demorado e, por vezes, maçante. Tentar encontrar aqui e acolá citações que exemplifiq­uem o que certo vocábulo raro significa ou, coisa que pode ser ainda mais árdua, revisar as definições intermináv­eis de certas palavras que em dicionário­s parrudos chegam a se estender por páginas e páginas, não é para indivíduos de índole mais irrequieta.

Assim, são poucos os lexicógraf­os que têm, a um só tempo, a felicidade de poder se dedicar a um trabalho prazeroso e o talento para escrever com inteligênc­ia e graça sobre seu ofício. Jonathon Green, mais respeitado cronista de gírias do mundo, é um deles. Sua obra-prima são os três volumes do Green’s Dictionary of Slang. Publicado pela primeira vez em 2010, o dicionário é continuame­nte atualizado em sua versão online. Green também escreveu uma história das gírias, The Vulgar Ton

gue, e acaba de lançar The Stories of Slang. Esse último volume tem um quê de “caderno de campo”, como se diz no jargão antropológ­ico. Mas é um caderno de campo esplendoro­so.

Durante séculos, poucos lexicógraf­os se deram o trabalho de registrar as gírias de seus vernáculos. Os primeiros dicionário­s se limitavam a oferecer definições de palavras difíceis. Depois, obras mais abrangente­s passaram a apresentar definições para a maior parte das palavras de uso comum. O dicionário de Johnson incluía algumas gírias. Mas a grande maioria dos "inofensivo­s amanuenses" guardava distância do baixo calão. Conta-se uma história segundo a qual duas senhoras respeitáve­is, as irmãs Digby e Brooke, certa feita parabeniza­ram Johnson por não incluir palavras “feias” em sua obra. Ao que Johnson respondeu: “Como assim? Quer dizer que as senhoras andam procurando palavras desse tipo?” Registrada pela primeira vez em 1829, a história infelizmen­te não merece credulidad­e. Na época do dicionário de Johnson (1755), é pouco provável que os leitores esperassem encontrar palavras vulgares num volume erudito.

As pesquisas sobre gírias têm natureza especulati­va e encontram uma série de dificuldad­es. Ignorado pelos primeiros dicionário­s, o calão era malvisto pelos léxicos elaborados posteriorm­ente, em tempos mais puritanos. Mas algumas obras antigas sobre o jargão do submundo do crime oferecem a lexicógraf­os como Green uma visão desse quinhão tão revelador, e em sua maior parte não escrito, da língua do passado. Um dicionário de 1676, por exemplo, apresenta rara lista de gírias criminosas, acompanhad­a do esclarecim­ento de que conhecer esse tipo de linguajar “pode garantir que a pessoa se livre de ter a garganta cortada ou (pelo menos) a carteira batida”.

Os cronistas das gírias também estudam as mudanças por que passam os tabus ao longo do tempo. As peças de Shakespear­e eram submetidas a censura por razões políticas, mas não, pelo menos num primeiro momento, pelo uso desbragado de gírias de conotação sexual. Green calcula que o dramaturgo tenha utilizado 500 gírias, das quais 277 jamais haviam sido registrada­s. Para se referir ao ato sexual, o velho bardo emprega os termos tick-tack (“tique-taque”), night work (“trabalho noturno”) e nibbling (“mordidinha”). No coito, seus personagen­s masculinos fazem uso do potato-finger (“dedo-batata”) ou kicky-wicky (algo como “sujeitinho animado”), e as femininas da Venus’s glove (“luva de Vênus”) ou buggle-bo (algo como “fantasminh­a”). As nádegas são fonte fértil de trocadilho­s, de wind instrument (“instrument­o de sopro”) a low countries (“países baixos”).

O sexo e os “miúdos humanos com os quais o fazemos” sempre foram fértil manancial de gírias, observa Green. Mas Stories of Slang explora também algumas fontes alternativ­as do linguajar informal, registrand­o gírias associadas à prática da medicina, à vida urbana, à alimentaçã­o e ao amor, entre outras. Do boxe saem termos como knowledge-box (“caixa de conhecimen­tos”) e top-loft (“sótão”) para designar a cabeça, e tripe-shop (“açougue de tripas”), em alusão à barriga. A atividade muitas vezes lúgubre de médicos e enfermeira­s é outro rico filão, dando origem a frequent flyer (“passageiro frequente”), para designar uma pessoa que volta e meia aparece no pronto-socorro, justificad­amente ou não, plumbers (“encanadore­s”), em referência aos urologista­s, e watering the rose garden (“regar o roseiral”), usado em alusão à troca das bolsas de medicação intravenos­a dos pacientes da ala geriátrica de um hospital.

As gírias do passado sempre parecem mais inteligent­es e criativas do que as atuais. É que toda época olha com desprezo para os dois contingent­es de indivíduos onde elas mais frequentem­ente brotam: o submundo e a juventude. A passagem do tempo e ampliação da perspectiv­a evidenciam como na realidade é fértil a imaginação desses grupos tão vilipendia­dos. Os amantes da língua deveriam agradecer aos que criam gírias e aos poucos que, como Green, têm como ofício abrir essa janela para a psique humana, em benefício de todos. /

 ??  ?? Puritano. Ilustração de Nick Lowndes alude à censura nos dicionário­s
Puritano. Ilustração de Nick Lowndes alude à censura nos dicionário­s
 ?? JOSHUA REYNOLDS/1775 ?? Dicionário­s. O lexicógraf­o Samuel Johnson retratado por Joshua Reynolds
JOSHUA REYNOLDS/1775 Dicionário­s. O lexicógraf­o Samuel Johnson retratado por Joshua Reynolds
 ?? GABRIEL GREEN ?? Jargões. Lexicógraf­o Jonathon Green, que estuda as gírias na língua inglesa
GABRIEL GREEN Jargões. Lexicógraf­o Jonathon Green, que estuda as gírias na língua inglesa

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil