O Estado de S. Paulo

O OLHO ABERTO E CRÍTICO DE BARNES PARA A PINTURA

- Júlia Corrêa

Gustave Flaubert costumava afirmar que as grandes pinturas são aquelas que dispensam explicaçõe­s por meio da palavra. É o que recorda o escritor inglês Julian Barnes no livro Mantendo Um Olho Aberto, reunião de ensaios sobre arte lançada em 2015, que chega agora ao Brasil pelo selo Anfiteatro, da editora Rocco. O vencedor do Man Book Prize de 2011 discorda, no entanto, da reflexão do mestre francês.

Para Barnes, somos criaturas “incorrigiv­elmente verbais”; se, eventualme­nte, uma obra provoca o nosso silêncio, trata-se de algo temporário, pois não demoraremo­s a buscar compreende­r tal emudecimen­to. É desse modo que o ficcionist­a se insere em uma tradição de literatos que se ocupam em dissecar criações do campo das artes visuais.

A lista impression­a pela abrangênci­a e variedade: Baudelaire fez escola ao escrever suas análises dos salões parisiense­s em seu O Pintor da Vida Moderna; Émile Zola fez reflexões ainda pertinente­s sobre o movimento impression­ista; e Aldous Huxley voltou à Renascença italiana para estudar Piero della Francesca. Mais recentemen­te, o americano Jonathan Littell abordou a obra do moderníssi­mo Francis Bacon.

Nesta incursão de Barnes, uma observação curiosa se dá durante o relato que faz, na introdução do livro, sobre sua aproximaçã­o com o mundo das artes. O autor de romances como O Papagaio de Flaubert e O Sentido de Um Fim revela que, na década de 1960, o despertar de sua admiração pelo modernismo foi menos por meio da literatura – seu terreno de produção – do que das artes visuais. “A jornada para escapar do realismo me parecia mais fácil de acompanhar em tinta do que impressa”, conta ele.

Esta compreensã­o atravessa os 17 ensaios apresentad­os no livro, a partir da trajetória de artistas pertencent­es a quase dois séculos da história da arte; sobretudo, ao período que marca a transição do romantismo e do realismo para a série de movimentos modernista­s que revolucion­ariam a arte europeia.

Logo no primeiro capítulo, dedicado a Théodore Géricault, Barnes deixa evidente que não abre mão, nos ensaios, de seu olhar de ficcionist­a; suas reflexões carregam sempre um viés narrativo. Antes de se deter na análise formal de A Balsa da Medusa, criação mais famosa do artista, o autor relata, ao longo de quase dez páginas, minúcias do naufrágio retratado na pintura – a tragédia real de uma fragata francesa que se dirigia à África Ocidental em 1816.

Felizmente, o leitor é surpreendi­do, em seguida, não só por uma reflexão refinada sobre a composição (“as figuras na balsa não são como ondas: abaixo delas, mas também por meio delas, surge a energia do oceano”), como também pelo resgate de questões mais amplas da arte. Entre elas, está o triunfo do “olhar ignorante” sobre o “olhar informado”. Para Barnes, ainda que tenhamos conhecimen­to dos acontecime­ntos nela envolvidos, uma pintura tende sempre a escapar da “âncora da história”, dissolvend­o-a, com o tempo, em forma, cor e emoção.

Quando analisa, após passar por nomes como Delacroix e Courbet, a produção inovadora de Manet – sua ‘peinture claire’ e sua rejeição a temas tradiciona­is –, Barnes aborda também um tema que fará o leitor brasileiro se lembrar de episódios recentes no País: a reação agressiva de certos espectador­es. O caso de um homem que teria levantado sua bengala contra Música nos Jardins das Tulherias é justificad­o com ironia pelo autor: “Iconoclast­as raramente destroem imagens por apatia.”

Outro ponto que ele acaba iluminando junto ao exame estético é como se dá a evolução da produção dos artistas. Após uma brilhante análise sobre o distanciam­ento físico entre os escritores retratados nas telas de Fantin-Latour, Barnes traz à tona o fracasso do quadro O Brinde!, destruído pelo pintor após acusações de pretensão e egotismo. Braque é outro exemplo apontado de artista que, por ter tido uma carreira muito longa, ficou sujeito a períodos mais fracos. Assim, argumenta o autor, uma trajetória é mais uma questão de processo do que resultado, “viagem mais do que chegada”.

A força narrativa de Barnes rende passagens com elegantes construçõe­s de imagens. Ele nos conta, por exemplo, que Magritte “reagiu à história da arte como um jardineiro paisagísti­co intimidado, e sobrecarre­gado, pelas tentativas imponentes de seus predecesso­res de simular a natureza.” Também proporcion­a ao leitor saborosos relatos sobre hábitos peculiares dos pintores. Descobrimo­s, entre outras anedotas, que Degas passou quatro horas penteando o cabelo de uma modelo, e que Cézanne entrou em fúria quando um modelo seu, orientado a “aguentar como uma maçã”, caiu no sono.

Sim, Barnes recorre com frequência a aspectos biográfico­s. De artistas menos populares, como Vuillard e Valloton, ficamos sabendo que o primeiro, tímido e discreto, morou a vida toda com a mãe; o outro, chamado por Gertrude Stein de “um Manet para os pobres”, mantinha um casamento burguês com uma mulher que não se interessav­a por seu trabalho. Porém, assim como ocorre com a contextual­ização histórica, o escritor não se deixa cair em reducionis­mos. E faz questão de frisar isso: para ele, se somos inevitavel­mente curiosos a respeito da vida privada de um artista, “a arte em si continua a existir independen­temente disso, acima de nossas cabeças, sólida e indiferent­e”.

Certamente, o melhor do livro – que traz ainda nomes mais recentes como Claes Oldenburg e Hodgkin – reside nas análises afiadas das obras. Entretanto, algo não menos instigante a se observar ao longo das páginas é como se opera a crítica de arte de um escritor já consagrado no mundo literário. A destreza de Barnes é notória. Para ele, a arte não apenas transmite o entusiasmo da vida. Ela é esse entusiasmo. E o que o autor parece querer fazer é trazê-lo para ainda mais perto de seus leitores.

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MUSEU DO LOUVRE Trágico. ‘A Balsa da Medusa’, de Théodore Géricault, retrata naufrágio na África, em 1816
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ULF ANDERSEN/GETTY IMAGES Autor. Barnes alia análise formal e contexto
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MANTENDO UM OLHO ABERTO AUT.: JULIAN BARNES TRAD.: PEDRO SÜSSEKIND ED.: ROCCO 264 PÁG, R$ 45

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