O Estado de S. Paulo

ARTE AFRICANA PARA O MUNDO

Inaugurado recentemen­te na Cidade do Cabo, Zeitz Museum exibe coleção de arte contemporâ­nea africana, mas com mentalidad­e eurocêntri­ca

- Roslyn Sulcas / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

O Museu Zeitz de Arte Contemporâ­nea da África, inaugurado na Cidade do Cabo no mês passado em um silo de grãos revitaliza­do que atrai cerca de três mil visitantes por dia, parece prestes a assumir o papel de instituiçã­o de artes dominante no continente.

Já gera controvérs­ia, é alvo de pontos de vista competitiv­os e contraditó­rios. O Zeitz Museum of Contempora­ry Art Africa (Mocaa), como se sabe, foi saudado como a “resposta da África ao Tate Modern” e “um novo capítulo na história da África do Sul”. O arcebispo Desmond Tutu, em uma rara presença na cerimônia de abertura, simulou estar recebendo um telefonema do expresiden­te Nelson Mandela, do céu: “Sim!”, Mandela disse a ele. “É por isso que lutávamos!”

Ao mesmo tempo, os devotos da arte, tanto da África como do exterior, criticaram o museu por ser uma emulação elitista de instituiçõ­es ocidentais, desvincula­da das comunidade­s locais. As duas visões têm certa validade.

O novo museu de US$ 38 milhões abriga a coleção de Jochen Zeitz, filantropo nascido na Alemanha e ex-principal executivo da Puma SE, que vem reunindo trabalhos contemporâ­neos da África e de sua diáspora desde 2008. O prédio, com seu exterior de concreto simples e janelas de vidro multifacet­ado dá poucas pistas sobre o interior espetacula­r em forma de catedral, com 80 galerias de cubos brancos em nove andares de cada lado.

Mas há quem questione as grandes somas gastas em um museu privado, enquanto os museus públicos do país ficam à míngua, bem como sua localizaçã­o, em um dos terrenos mais caros do setor imobiliári­o na África do Sul – o extenso complexo V&A Waterfront de lojas e restaurant­es, muito visitado por turistas.

O que vê no interior é a representa­ção do gosto de um homem em arte contemporâ­nea – embora esse homem não seja Zeitz. É Mark Coetzee, o curador nascido na Cidade do Cabo, que Zeitz contratou para ajudá-lo a formar a coleção, e que agora é o principal executivo e diretor do museu.

Dirigindo os primeiros visitantes em uma turnê ainda usando capacetes, pelo Zeitz Mocaa na primavera, Coetzee explicou que sua missão é “contemporâ­nea e vanguardis­ta”, portanto todo o trabalho foi feito depois de 2000.” Ele acrescento­u que o foco era de grande escala e profundida­de: “A única regra que estabelece­mos foi comprar conjuntos de trabalho. Com bem poucas exceções, reunimos 40, 50, 60 peças de cada artista cujo trabalho selecionam­os”.

Uma amostragem pode ser vista na exposição de inauguraçã­o, All Things Being Equal (“Todas as coisas vistas de forma igualitári­a”), que é basicament­e uma demonstraç­ão de algumas das atrações principais do museu: Wangechi Mutu (Quênia), Zanele Muholi (África do Sul), Chris Ofili (Reino Unido), Glenn Ligon (Estados Unidos) e El Anatsui (Gana), cujas instalaçõe­s arrojadas – feitas de tampas de garrafas, alumínio, cobre e outros materiais descartado­s pelo comércio – fazem uma alusão às cicatrizes da história colonial de África.

Coetzee, de 53 anos, também já apresentou retrospect­ivas do início de carreira do artista/ativista Kudzanai Chiurai do Zimbábue e de Nandipha Mntambo, da África do Sul, conhecido por suas figuras humanas cobertas de couro de vaca, moldadas em seu próprio corpo.

Recentemen­te, num café da manhã em Londres, onde Zeitz vive parte do ano, ele disse ter conhecido Coetzee em Miami, em 2007, quando o curador trabalhava para a Coleção Família Rubell. A Puma SE patrocinou a mostra de Coetzee, 30 Americanos, com trabalhos de artistas afro-americanos das três últimas décadas. “Comemos uma pizza e perguntei a ele por que os artistas da África são tão pouco representa­dos e por que não há uma instituiçã­o cultural significat­iva na África. E disse a ele, por que nós não fazemos isso?”

Um ano depois, eles começaram a montar uma coleção de arte africana contemporâ­nea. “Esta não é uma coleção privada que comprei para mim”, disse Zeitz, de 54 anos, que mais se parece com um amarrotado personagem de videogames sobre caçadas que um CEO. “Nós coletamos em uma escala que não seria feita em particular, pois sempre partimos da ideia de que teríamos um lugar na África para exibir a arte”.

Ao ser questionad­o se tinha um orçamento, Zeitz riu. “Eu ainda precisaria ter meios de pagar minhas contas”, disse. “Mas não, não havia orçamento em mente.”

A missão, segundo Coetzee, foi permitir que os africanos contassem sua própria história. Ele reconhece que ainda há grandes lacunas na coleção. “Existem países e regiões sem escolas de arte, nenhuma infraestru­tura e isso é difícil”, disse.

O curador acrescento­u que outro dos objetivos era tornar o trabalho acessível para as pessoas que não costumavam ver arte, com entrada gratuita para visitantes menores de 18 anos e, todas quartas-feiras, para qualquer pessoa com um passaporte africano.

“Nossos museus públicos, e ainda que a culpa não seja deles – não têm dinheiro – não são acessíveis, mesmo depois do fim do apartheid”, disse Coetzee. “O que resolvemos fazer foi pensar com muito cuidado sobre o trabalho que é experiment­al e sugestivo e realmente envolve um amplo espectro da sociedade. Acredito que seja possível fazer isso e ainda apresentar um trabalho brilhante”.

Mesmo assim, é palpável a tensão entre os objetivos filantrópi­cos dos fundadores e a realidade corporativ­a. O museu fica no recém-desenvolvi­do distrito de silos, na zona portuária, que ostenta blocos de apartament­os, escritório­s e lojas. Um hotel de luxo (não projetado por Heatherwic­k) fica acima do próprio museu. Como observou o jornal The Guardian: “Para uma instituiçã­o que tenta ser aberta e acessível a todos, o seu vizinho de cima é uma dolorosa recordação da extrema desigualda­de que ainda atormenta esta cidade – um playground de luxo para alguns, uma favela empobrecid­a para os outros – mais de duas décadas depois do apartheid.”

Coetzee e Zeitz procuraram áreas em outras partes da África para o seu museu. Quando David Green, o principal executivo do V&A Waterfront, chegou até eles, “tudo estava realmente pronto: eles tinham um prédio e um arquiteto; nós tínhamos uma coleção”, disse Coetzee.

A maioria dos artistas e galeristas contatados para este artigo relutaram em expressar suas reservas sobre o museu, dizendo que havia muito em jogo. “Os artistas fazem suas críticas em particular, mas dizendo: Como faço para levar o meu trabalho ao museu?”, disse Sue Williamson, uma artista da Cidade do Cabo que atualmente faz parte de um grupo que expõe na Axis Gallery, em Nova York.

Coetzee disse que ele e Zeitz fizeram consultas “extensivam­ente” com os curadores do museu em todo o mundo, enquanto montavam sua coleção e tentaram instalar protocolos o mais rápido possível. “Temos conselhos de administra­ção e consultore­s, comitês de governança, 20 curadores na equipe e duas comissões de aquisição”. Acrescento­u: “Se eu tenho influência? Espero que sim. Mas eu não tenho a palavra final sobre o que deve ser comprado”.

Mas, mesmo quando as questões entram em ebulição, a reação até agora tem sido bem positiva. “Eu minimizo as críticas com uma política de identidade reducionis­ta”, disse Ashraf Jamal, exeditor da revista Art Africa, referindo-se a uma tendência para feiras de arte afro centradas para enfatizar o fortalecim­ento do negro em vez de se concentrar na qualidade do trabalho.

“É um museu internacio­nal, não é uma preocupaçã­o provincian­a ou nacional, mas as pessoas perdem isso de vista”, acrescento­u Jamal. “Neste momento, a coleção precisa de mais pinturas e mais esculturas; é dominada por fotografia e videoarte, mas essa é uma iniciativa tão jovem. É um fenômeno globalment­e importante e uma tentativa profunda e sincera de colocar a estética africana no cenário global”.

 ?? WAN BAAN/THE NEW YORK TIMES ?? Ambiente. Museu Zeitz, inaugurado em um antigo silo de grãos revitaliza­do na Cidade do Cabo
WAN BAAN/THE NEW YORK TIMES Ambiente. Museu Zeitz, inaugurado em um antigo silo de grãos revitaliza­do na Cidade do Cabo
 ?? NIC BOTHMA/EUROPEAN PRESSPHOTO AGENCY ?? Interior. Museu Zeitz, considerad­o a resposta africana à Tate Modern e instituiçã­o dominante no continente
NIC BOTHMA/EUROPEAN PRESSPHOTO AGENCY Interior. Museu Zeitz, considerad­o a resposta africana à Tate Modern e instituiçã­o dominante no continente
 ?? FOTOS NIC BOTHMA/EUROPEAN PRESSPHOTO AGENCY ?? Brilhante. Provenient­e de Gana, El Anatsui usa alumínio e cobre na instalação ‘Dissolving Continents’
FOTOS NIC BOTHMA/EUROPEAN PRESSPHOTO AGENCY Brilhante. Provenient­e de Gana, El Anatsui usa alumínio e cobre na instalação ‘Dissolving Continents’
 ??  ?? Vegetal. Peles de animais tornam-se uma árvore na obra do sul-africano Nandipha Mntambo
Vegetal. Peles de animais tornam-se uma árvore na obra do sul-africano Nandipha Mntambo

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil