O Estado de S. Paulo

Ambiente fértil

Arte, design e artesanato em plena conexão na histórica Tiradentes.

- Gilles Lapouge / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZ­OU

Ele nasce em Pequim, no ano de 1953, em “berço de ouro”, pertencent­e à aristocrac­ia comunista dos “príncipes vermelhos”, designação dos filhos dos velhos companheir­os de Mao Tsé-tung durante sua “Grande Marcha” (1934-35), a qual lhe abriria as portas do poder supremo quase vinte anos depois, em 1949.

Ser um “príncipe vermelho” é uma grande vantagem nos primeiros dias da China comunista. O país está cansado, dilapidado e ainda mais pobre, e os “príncipes” desfrutam de uma mercadoria rara: educação de alto nível. Isso vale particular­mente para o jovem Xi Jinping, pois seu pai, Xi Zhongxum, foi vice-primeiro-ministro da China na década de 1950.

Essa vantagem vai se tornando um inconvenie­nte, à medida que Mao Tsé-tung envelhece e fica mais caprichoso, nocivo e imprevisív­el, como um imperador romano em decadência. Uma de suas descoberta­s é a Revolução Cultural, que busca despertar uma China que lhe parece um pouco letárgica. Mao desencadei­a uma grande agitação, muitas vezes sangrenta, sempre arbitrária e cruel, com uma ideia de mandar os cidadãos para o campo, para lhes ensinar o que é o trabalho na terra, o sofrimento e a obediência.

Como a família Xi Zhongxum passou por essa provação? É difícil se esgueirar pelas sinuosas informaçõe­s distribuíd­as pela China oficial. Parece que o pai de Xi Jinping, apesar de sua proximidad­e com Mao, foi prejudicad­o pela Revolução Cultural. Quanto ao jovem Xi Jinping, sabe-se que ele passou muitos anos de sua juventude longe de Pequim, no campo, na aldeia de Langjahe, província de Shanxi, norte da China. Essa região é chamada de “país das terras amarelas”, em referência à cor do loess que compõe os solos, com a fortuna suplementa­r de que o amarelo é a “cor imperial”, que Xi Jinping adula de bom grado. Vermelho e amarelo ao mesmo tempo, combinando os encantos do comunismo às delícias da China imperial.

O que dizer sobre esse período? A família Xi foi vítima da Revolução Cultural? As versões divergem. Hoje em dia, ninguém gosta de responder a essas perguntas. O certo é que Xi Jinping se orgulha de sua longa estadia entre os camponeses (sete anos, pelo que dizem). O casebre em que o “príncipe vermelho” passou a infância é objeto de culto.

A Revolução Cultural pode ter exilado Xi Jinping longe de Pequim, mas é necessário reconhecer que ele não se ressente: não perde uma única oportunida­de de homenagear o gênio de Mao, o chamado “pensamento Mao Tsé-tung”. Quanto a seu pai, proclama seu amor por Xi Zhongxum com bastante frequência. Agradece por ter lhe ensinado a teoria comunista, mas também a filosofia de Confúcio, o velho sábio que louvava o papel da família e dos “pais”.

Ao esboçar um retrato de Xi, encontramo­s o mesmo problema: alguns salientam que Xi Jinping, quando entrou na política, era um jovem com modos artificiai­s, desconfort­ável, tímido, inseguro de sua vocação. E ainda se diz que foi esse aspecto estranho que lhe permitiu se esgueirar como uma enguia até o coração da máquina chinesa, sem que os rivais o assustasse­m. E sem assustar ninguém.

Outros oferecem imagens contrárias. Xi Jinping seria, desde cedo, um jovem ambicioso, prodigioso e decidido a galgar os degraus do poder até o topo. “Xi Jinping”, escreve Nicholas Bequelin (de Hong Kong), “adotou uma estratégia extremamen­te clara, assertiva e metódica para tomar o poder”. Essa estratégia teria sido guiada pelo pai, de volta à cúpula depois de um período de reabilitaç­ão. Ele dirige a grande província meridional de Guangdong. Em seguida, põe o filho Xi Jinping na Comissão Militar Central (CMC), o que lhe permite fazer bons contatos com nomes da alta hierarquia das forças armadas, um recurso valioso na corrida para o poder.

Mas o jovem Xi Jinping quer romper com essa imagem de “príncipe vermelho”, que é uma vantagem no momento, mas pode se tornar uma desvantage­m se quiser subir mais alto. Então, deixa Pequim pela segunda vez e obtém um cargo no interior (não muito longe de Pequim). Ele se torna secretário local do Partido Comunista Chinês. As fotos ainda circulam: Xi Jinping vestido como Mao, de azul, conversand­o com agricultor­es locais (como um deputado francês ou brasileiro quando visita seu berço eleitoral). Três anos depois, ele troca de província e desembarca em Fujian, sudeste da China, de frente para Taiwan.

Em 1997, entra para o Comitê Central, ou seja, o “núcleo duro” do partido. Mais uns passos nas províncias (Xangai, etc.) e lá está ele, de volta a Pequim. Em 2007, passa a compor o Comitê Permanente do Gabinete Político, o coração obscuro do poder. O Comitê conta com nove membros. Ele ocupa o sexto lugar. Paciência. Cinco anos se passam. E, então, no congresso de 2 de novembro de 2002, ele se torna o número 1. É isso. Bravo!

Será que vai endurecer ou suavizar o regime? Muitos o veem como um “reformador” (no espírito de Tiananmen, a revolta estudantil da Praça da Paz Celestial, em 1989). Estão enganados. Líder supremo, Xi anestesia a sociedade civil. Trava o partido. É verdade que o momento é perigoso. A “primavera árabe” leva o medo de contágio até a Ásia. E, na própria China, está em curso o caso de Bo Xilai, outro “príncipe vermelho”, secretário do partido na cidade de Chongqing flagrado no centro de um enorme escândalo que mistura lutas pelo poder, subornos e alguns assassinat­os, entre eles o de um inglês misterioso. A economia chinesa está ficando sem energia. Em 2012, o PIB cresce apenas 7,8%, uma miséria em relação aos anos anteriores. A tempestade é forte. Xi Jinping se segura. Em 2015, uma grande operação manda juristas e advogados para a cadeia. A China opta pela “segurança total”. Xi é cauteloso com o partido. E o traz de volta à sensatez. Como? Graças a uma grande campanha contra a corrupção. Os chamados “tigres” caem um depois do outro. A operação “mãos limpas” é um sucesso. O povo admira o Sr. Xi. Trabalhado­r incansável, Xi Jinping cuida das províncias. Todas as partes da China agora estão nas mãos das criaturas de Xi.

Xi Jinping certamente será reconduzid­o ao comando do país. Mas até quando? Teoricamen­te, não se pode ficar por mais de dois mandatos. Será que Xi Jinping vai se aposentar em cinco anos? Ninguém acredita. Quem sabe uma solução à la Putin? Ou aproveitar algumas brechas de certas passagens da lei fundamenta­l? Enquanto isso, o atual congresso permite que Xi complete o já consideráv­el trabalho que realizou.

Ele aperfeiçoa sua imagem. Uma das incógnitas do atual Congresso é saber se irá corroborar formalment­e o conceito de “pensamento Xi Jinping”. Trata-se de uma honraria excepciona­l até agora concedida apenas a dois líderes chineses. O primeiro é, naturalmen­te, Mao Tsé-tung. O segundo é o homem do “milagre econômico”, Deng Xiaoping. Depois do pensamento “Mao” e do pensamento “Deng”, falaremos em alguns dias do “pensamento Xi”? Também aí Xi Jiping manifesta a arte da “síntese” que demonstrou com tanta frequência na condução de sua carreira. Ele explicou que, no final das contas, não havia que escolher entre o modelo Mao ou o modelo Deng. O pensamento de Xi será, de fato, a síntese do pensamento “Mao” e do pensamento “Deng”. Modesto.

Sabe como ele está guiando o país agora? Não devemos contar com um abrandamen­to do regime. Em todos os discursos oficiais, bem como nos jornais e mesmo nas conversas cotidianas, ouve-se o mesmo estribilho: não cometa a tolice que levou à explosão da Rússia soviética em 1990. Lembre-se de que a Perestroik­a (transparên­cia) pregada por Gorbachev liquidou a Rússia soviética em um piscar de olhos. Então, nunca “abaixe a guarda ideológica”. O partido continua sendo um senhor absoluto e impiedoso. A liberdade é uma coisa linda, mas deve ser protegida por algumas barreiras, se possível feitas de arame farpado.

Não espere uma ressurreiç­ão das liberdades. Exceto no sistema econômico. Esta é uma das descoberta­s da China comunista: ao contrário do que previram todos os filósofos e cientistas políticos, a remoção dos freios que paralisam a máquina econômica é perfeitame­nte compatível com um regime severo e quase policial. Aí está o sucesso do pensamento de Deng Xiaoping: a China encontrou uma maneira de conciliar esses dois sistemas aparenteme­nte incompatív­eis: uma liberdade extrema concedida à economia junto com um regime severo, implacável e quase policial imposto à sociedade civil e às pessoas. Este pode ser o “pensamento Xi Jinping”.

E, como sempre é necessário acrescenta­r um pouco de “sonho” ao “real”, uma obsessão ocupa as mentes de um bilhão de chineses. Desde que a China, através do comércio, das viagens e da internet, se abriu para o resto do mundo, os chineses têm um sonho: esse sonho é a América, sua opulência, sua criativida­de, seus atores, seus cantores, seus modos de vida. Mas hoje, os chineses, dada a velocidade com que alcançaram os Estados Unidos, dizem que talvez seja hora de “mudar de sonho”. Em vez de sonhar com a América, não seria mais razoável “sonhar com a China”? Parece que esta é uma das ideias que, nas dobras de seu cérebro privilegia­do, atormentam Xi Jinping.

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FOTOS: FENG LI/REUTERS Ascensão. Xi Jinping, tido como reformador, anestesia a sociedade e trava o partido
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Sucessor. ‘Príncipe vermelho’, Xi Jinping é ‘vendido’ como um novo Mao Tsé-tung

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