O Estado de S. Paulo

‘O partido se acostumou com a violência’

Historiado­r Tamás Krausz, Húngaro acredita que massacre associado ao regime comunista decorreu de influência­s internas e externas

- Marcelo Godoy (TRADUÇÃO IRINEU FRANCO PERPÉTUO)

O historiado­r húngaro Tamás Krausz critica o uso da violência pelo partido e pelos líderes comunistas e diz que o problema não era só Stalin, mas os “muitos Stalins” que existiram e o “impulsiona­ram”. • Em seu livro Reconstrui­ndo

Lenin, o senhor relata que os bolcheviqu­es não souberam impor limites à violência e aos métodos ditatoriai­s. Quais as consequênc­ias disso para a revolução? A violência teve uma influência muito forte no partido. Simplesmen­te “acostumara­m-se” a que os problemas se resolvesse­m pela força, com métodos “da guarda vermelha”. Os métodos militares eram “normais” na guerra civil, mas depois começaram a ser empregados também uns contra os outros, sem falar em operários e camponeses amotinados. Posteriorm­ente, o poder stalinista mitificou essa “tradição” como heroísmo, ousadia na ação política. A revolução arrefeceu. Em vez de auto-organizaçã­o, coação burocrátic­a. É claro que não se pode “desistoriz­ar” o processo histórico, e explicar tudo pela má vontade de Stalin. • O historiado­r Oleg Khlevniuk diz que o Grande Terror é a reação de Stalin à direção colegiada do partido, que limitava seu poder. Em que medida Stalin foi coveiro da revolução ou natural consequênc­ia do regime soviético? Khlevniuk, por um lado, está certo, pelo outro é melhor sublinhar que a questão não é só Stalin. Como o filósofo marxista húngaro György Lukács formulou, “muitos Stalins” existiram, e eles também impulsiona­ram Stalin para a cova escura do terror da ditadura pessoal. Já passara o perigo da restauraçã­o capitalist­a, era preciso baixar o nível do terror, em vez de aprofundá-lo. Mas ouso dizer que o coveiro da revolução foi feito principalm­ente pela história. É produto não só da história soviética, mas surgiu antes de tudo de traços específico­s do processo histórico russo, da ausência de premissas socioeconô­micas e civilizaci­onais para o socialismo.

A violência da guerra civil influencio­u Stalin?

Eu falaria em três níveis de violência herdados pela história soviética. 1) Tipicament­e, até 1905, o castigo corporal era um meio legal de manter o controle da população, especialme­nte os camponeses. 2) A herança violenta do colonialis­mo ocidental com campos de concentraç­ão, a violência do imperialis­mo, sob a forma da 1.ª Guerra. 3) A guerra civil, cujos métodos surgiram até no Grande Terror.

• O Gulag era um grande empreendim­ento econômico. Nesse sentido, como o uso de condenados em projetos do NKVD era importante para a URSS?

Sem dúvida havia ramos para os quais era difícil encontrar força de trabalho. Por exemplo, escavar ouro e metais não-ferrosos e produzir madeira na tundra e na região norte. Porém, depois da guerra, esse trabalho forçado não era efetivo e, portanto, era ainda mais nocivo moralmente. O Gulag, do ponto de vista econômico, participou da indústria da defesa. Ocorre muito de exagerarem a importânci­a econômica do Gulag no desenvolvi­mento econômico soviético.

• Qual a consequênc­ia para o sistema soviético da morte de milhões de pessoas no Gulag?

Aqui notarei uma consequênc­ia que é muito esquecida. Quando reunimos os motivos do malogro da União Soviética, do sistema de socialismo de Estado, é obrigatóri­o assinalar entre eles a morte em massa de pessoas sem culpa nenhuma nos anos 1930. Sua memória é um fardo imenso para os que guardam lembranças positivas da tradição socialista-comunista do desenvolvi­mento soviético, da revolução até o fim da URSS.

• Por que o Degelo de Kruchev e a Glasnost/Perestroik­a de Gorbachev não reformaram o regime?

Porque essas reformas de Gorbachev estavam voltadas para a manutenção dos privilégio­s da casta burocrátic­a, dos estratos com estímulos capitalist­as de mercado que, no fim, levaram à restauraçã­o do capitalism­o. Kruchev ainda não capitalizo­u o país com reformas confusas, nem abriu a porta à autonomia da sociedade, parte teórica do programa do 22.º Congresso do PC da URSS, em 1961. Claro que nem Kruchev nem Gorbachev pensavam em socializaç­ão, em democratiz­ação da propriedad­e estatal, em controle das empresas pelos trabalhado­res. Gorbachev ajudou o processo de privatizaç­ão da propriedad­e do Estado, ajudou uma parte da nomenklatu­ra a se tornar os novos capitalist­as, os oligarcas. A propriedad­e socialista estatal virou propriedad­e privada. A responsabi­lidade de Gorbachev é clara, como o papel de Lenin na aniquilaçã­o da propriedad­e privada capitalist­a.

“Muitos ‘Stalins’ existiram e eles impulsiona­ram Stalin ao terror”

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil