O Estado de S. Paulo

A arca feminina de Gerald Thomas

Diretor estreia no Brasil e fala dos recentes casos de assédio nos EUA

- Leandro Nunes

Apesar de ter aprendido a tocar contra baixo com os melhores – leia-se John Paul Jones, do Led Zeppelin – o diretor Gerald Thomas arranha o instrument­o sem tanta preocupaçã­o no palco do Sesc Consolação. Seus olhos estão fixos na dupla de bailarinas que flutua em Dilúvio, espetáculo que estreia nesse sábado, 11.

E não há só elas, mas o elenco todo é de composto por mulheres. Motivo pelo qual Thomas estranha a pergunta. “Se fosse só um elenco de homens ninguém perguntari­a.” Talvez, mas em tempos em que a safra de denúncias de assédio sexual fechou o tempo em Hollywood, o diretor é radicado nos EUA – e pintam casos no teatro paulistano, um time de mulheres em cena não é tão insuspeita assim. “Eu não acredito como um homem pode fazer isso por anos e anos e continuar dormindo bem”, contou em referência ao produtor Harvey Weinstein, acusado de assédio nas últimas três décadas e o ator Kevin Spacey, sucesso de House of Cards, envolvido em um escândalo com Anthony Rapp, quando o ator tinha 14 anos. “Ou isso é uma doença ou eles são esquizofrê­nicos.” Para a atriz portuguesa Maria de Lima que integra a Companhia de Ópera Seca, fundada em 2010, o machismo também está na forma como a mídia divulga os escândalos. “É certo que o tempo pesa contra Weinstein, mas no caso de Spacey, chocou mais só porque ele abusou de um homem.”

Em Dilúvio, Thomas deseja menos contar uma história e mais criar imagens. O episódio bíblico da arca de Noé é um claro ponto de partida. Seja no corvo que carrega uma mulher, um cemitério de guarda chuvas, ou uma barca que é puxada sob um chão infértil. “Eu vivo querendo escrever peças para a Maria. Em uma delas, ela seria a irmã mais velha da Shakira.”

Foi também no Sesc Consolação que a Ópera Seca estreou Entredente­s, em 2014, em uma parceria com Ney Latorraca, Maria, e Edi Botelho. Nessa mesma companhia que em 1991 o diretor colocou Fernanda Torres e Fernandona, juntas no palco, em Flash and Crash Days, que estreou na Croácia, com a espantosa cena de mãe e filha se masturband­o.

No ano passado, o diretor fez uma temporada no Brasil para o lançamento de sua autobiogra­fia Entre Duas Fileiras, trazendo relatos de sua vida no palco e fora dele. Em Dilúvio, é certo que a megalomani­a de uma irmã mais velha de Shakira – ainda não realizada – não é exagero para uma atriz como Maria. Na peça, sua presença interrompe o passeio dos olhos pela atmosfera criada pela luz de Wagner Pinto. Ela faz uma histérica mulher rica que chega sentada em uma carroça, carregada por outra mulher. Vestida entre penas e paetês, ela ordena, entediada, à plateia. “Entertain me! Entertain me!” (Entretenha-me! Entretenha-me!).

No mesmo palco, o diretor suspende a caricatura mortal de Maria pendurando as bailarinas norte-americanas Lisa Giobbi e Julia Wilkins em performanc­es aéreas. Um não tão complicado sistema de cabos permite que a dupla execute movimentos na horizontal e vertical, além girar sobre o eixo deslocado na cintura e preso nas duas cordas. O que se vê leve e quase descontraí­do, como Lisa caminhando no ar com os pés apoiados nas mãos de Julia, integra uma equipe de três técnicos, para cada bailarina. “Não fazemos nada sozinhas”, diz Lisa. “Foi preciso pensar em uma série de movimentos possíveis dentro do que gostaríamo­s de fazer em cena, e ensaiar muito com toda a equipe. O desafio é fazer e refazer todos os dias. E a beleza do teatro.”

“Eu não acredito como um homem pode fazer isso por anos e anos e continuar dormindo bem” Gerald Thomas, AUTOR E DIRETOR

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As bailarinas Lisa e Julia ficam suspensas em cena DILÚVIO Sesc Consolação. R. Dr. Vila Nova, 245. Tel.: 3234-300. 5ª, 6ª e sáb., às 21h; dom., às 18h. R$ 40. Estreia hoje, 11. Até 17/11.
WERTHER SANTANA/ESTADÃO Aéreo. As bailarinas Lisa e Julia ficam suspensas em cena DILÚVIO Sesc Consolação. R. Dr. Vila Nova, 245. Tel.: 3234-300. 5ª, 6ª e sáb., às 21h; dom., às 18h. R$ 40. Estreia hoje, 11. Até 17/11.

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