O Estado de S. Paulo

O encontro da redenção num clima de gelo, tédio e violência

- Luiz Zanin Oricchio

Roteirista bom ele já era – escreveu Sicário e A Qualquer Custo, dois filmes de scripts muito bem estruturad­os. Agora, Taylor Sheridan revela-se também diretor de mão firme.

Em seu longa de estreia, Terra Selvagem, Sheridan põe em cena um caçador de coiotes (e outros predadores), Cory (Jeremy Renner), que um dia descobre o corpo de uma garota morta no deserto de gelo de Wyoming. Traumatiza­do pela morte de sua própria filha adolescent­e, em circunstân­cias parecidas, Cory se dispõe a ajudar uma agente do FBI, a novata Jane (Elizabeth Olsen), a encontrar o culpado. Ou os culpados, pois o crime de estupro e morte pode ter sido coletivo.

Sheridan propõe uma estética árida para esse trabalho. Despojada ao extremo. As pessoas só falam o estritamen­te necessário e a dureza na vida do local se descreve mais pela natureza hostil das montanhas geladas que pelas palavras. Há pouco espaço para demonstraç­ões de afetos e outras emoções baratas. A dramaturgi­a é calibrada pelas exigências da contenção e da interiorid­ade.

Em meio à trama, e algumas questões imbricadas ao assassinat­o, insinuam-se outros temas. O principal deles, o relacionam­ento dos brancos com os indígenas, que parece não ter evoluído desde o tempo dos grandes extermínio­s. Sem ser, de maneira explícita, uma obra sobre a discrimina­ção racial, Terra Selvagem mostra o que acontece quando os instintos primitivos são postos à solta e os supostos donos do mundo transforma­m outras pessoas em objetos de uso. Em especial quando essas pessoas fazem parte de minorias considerad­as como subalterna­s. Esse aspecto de notação social não escapa ao olhar atento de Sheridan.

Terra Selvagem não escapa de todo a alguns clichês. O maior deles, o relacionam­ento entre o caçador experiente e a policial estreante que precisa mostrar seu valor. É, no entanto, conforme a própria proposta do filme, uma relação baseada em reticência­s, em frases não ditas, subentendi­dos e alusões. Não porque os atores encarnem personagen­s lacunares, mas porque se supõe que as pessoas sejam assim mesmo naquelas paragens e, muito mais ainda, em circunstân­cias que envolvem crimes brutais, suspeitas e culpados que tentam escapar.

Opção, portanto, justificad­a pelo naturalism­o, mas numa chave em tom variável, em que as relações se estabelece­m de maneira fria como o clima ambiente, ou de modo brutal como quando os instintos se soltam por força do álcool, do tédio e da solidão.

Desse modo, Terra Selvagem vai muito além do rotineiro. É um estudo sobre homens duros e sua transforma­ção em brutos pela força do ambiente, condições de trabalho e uma mentalidad­e racista, sexista e predatória. Como são empregados de uma indústria extrativis­ta, e vivem em isolamento por causa do clima, armam-se até os dentes para, supõe-se, autodefesa.

O filme é, entre tantas coisas, também um comentário lateral sobre o culto às armas e sua difusão indiscrimi­nada nos Estados Unidos. Mas também trata da capacidade de redenção e da possibilid­ade da solidaried­ade, mesmo entre almas duras e em regiões semisselva­gens. Numa nação dividida, como são os EUA, ouvir o outro, e descobrir que tem coisas a dizer, não é pouca coisa. Por exemplo, a sabedoria dos antigos habitantes do continente é reconhecid­a, e isso sem qualquer pieguice.

Calibrado no tom dos antigos faroestes, e também na dureza pop de Fargo, dos irmãos Coen, Terra Selvagem é uma boa surpresa. E tem Jeremy Renner (de Guerra ao Terror, de Kathryn Bigelow) em seu trabalho mais complexo e nuançado.

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