A GENEALOGIA DO EMBUSTE
Kevin Young, o prolífico poeta, crítico e editor de poesia na The New Yorker, tem, como dizem seus amigos, gosto pelas coisas mais refinadas: celebra os prazeres sensuais da arte, da comida, roupas (essa é de Natasha Trethewey, poeta laureada dos Estados Unidos). Ele raramente é visto sem um lenço de bolso. “Antigamente nós costumávamos ter dias de competir como dândis”, recordou o romancista Colson Whitehead. “Mas eu acho que ele ultrapassou meus limitados poderes. Parei de tentar competir há muito tempo”.
Como diretor do Centro Schomburg de Pesquisa em Cultura Negra no Harlem, parte da Biblioteca Pública de Nova York, Young supervisiona uma coleção de livros, manuscritos, papéis e coisas efêmeras que abrangem as glórias das artes e das letras negras. Há um romance inédito e uma peça de James Baldwin; o arquivo do grande saxofonista de jazz Sonny Rollins; DVDs vintage de filmes de “blaxploitation” (exploração de negros) dos anos 1970 que mostram em telas, alguns andares acima do palco do American Negro Theatre, onde já se apresentaram Sidney Poitier e Harry Belafonte.
Mas Young, que completa 47 anos esta semana, dedicou os últimos seis anos de sua vida ao estudo intenso e constante de, vamos dizer de uma forma polida, desonestidades. Na próxima semana, Young publicará Bunk: The Rise of Hoaxes, Humbug, Plagiarists, Phonies, Post-Facts e Fake News,
um livro com histórias, biografias e muito próximo de um catálogo racional do embuste. “Eles (os embustes) nos contam uma espécie de história sobre nós mesmos”, disse ele, uma tendência que está se tornando cada vez mais insistente.
Quando Young começou o livro, imaginou uma “pequena meditação em torno da ideia do que é uma mistificação”. Mas a história é rica e bem recheada de falsidades, e Young, já um conhecedor de fraudes – ele comentou que pergunta a amigos em jantares sobre quais seus embustes favoritos e compartilhou alguns dos seus próprios (ele tinha ficado fascinado com a farsa da poesia Spectra, uma paródia de poesia modernista levada a sério) – e encontrou muitos casos mais que exigiram atenção. O livro, tanto compêndio como narração, inflou para quase 500 páginas.
Bunk traça uma linhagem de mentiras ao longo do tempo. Começa no século 18, com falsificadores de Shakespeare e os viajantes mentirosos; atravessa o século 19, com P.T. Barnum como uma espécie de mestre de cerimônias / mestre impostor (entre os quais estavam as incríveis apresentações de Joice Heth, uma mulher negra que supostamente teria sido a babá de George Washington – o que a levaria a ter, no tempo de Barnum, 161 anos de idade); e continua com as falsas memórias de personagens falsas dos séculos 20 e 21. (Na taxonomia de Young, o embuste, ao contrário de uma mentira, uma teoria da conspiração ou uma lenda urbana, flerta e se delicia com a possibilidade de ser descoberto, pelo menos em suas iterações iniciais.)
Algo ao qual o embuste retorna, tanto sabotando como corroborando, descobriu Young, é a raça. “Eu tinha uma suspeita de que os casos geralmente envolviam raça", disse Young, mas ficou impressionado com a frequência com que os embustes que ele encontrou voltavam ao tema. “O embuste põe a nu tanto o preconceito (na exibição de Barnum de um homem negro como “O que é isso?”, o elo perdido) e a apropriação indébita (como no caso de Rachel Dolezal, ex-presidente de um capítulo da Naacp que vivia como uma mulher negra até ser expulsa, em 2015, como branca).
O livro anterior de Young, The Grey Album, examinou o poder gerador da narração, mas Bunk assume uma visão mais sombria. A progressão do embuste, como o descreve Young, vai da honra ao horror. Embustes iniciais validados: um jovem poeta que traçou uma falsa genealogia entre ele e os grandes; Joice Heth criando uma linha direta entre seus espectadores do século 19 e o pai dos Estados Unidos. No final do século 20, o engodo torna-se sombrio: Young aponta para embustes como falsas memórias de Holocausto ou de Benghazi ou mesmo, em sua opinião, Dylann Roof, o atirador de Charleston, Carolina do Sul, a quem Young vê como alguém atuando a serviço de um embuste – o embuste que é o racismo, na visão de Young – que entende a negritude e as pessoas negras como uma ameaça.
Em sua proximidade com a violência e a transmissão cada vez mais acessível através da internet, o embuste tem sofrido uma metástase, as possibilidades aumentadas cada vez mais no que Young chama de “A Era do Eufemismo”, quando “fake news” é uma palavra de ordem para qualquer relato indesejável. “De certa forma, o livro é a pré-história de Trump”, disse David Remnick, editor da New Yorker.
Quanto mais Young pesquisou, mais terríveis parecem ser os embusteiros e os embustes de hoje. As trágicas qualidades da mistificação moderna “superaram qualquer triunfo que a farsas tenha buscado uma vez”, disse Young. “Temos mais e piores. Agora são piores pelos danos e pela intenção. E ver isso, e comprovar estar certo, ou ser visionário, é uma espécie de vitória sem ganho”.
O livro termina em uma nota sem meias palavras: “o mundo meio-embuste parece não parece estar em risco de terminar – a menos que seja para dar lugar ao engodo total.” Mas quando perguntei se ele sentia qualquer compulsão para começar o Volume II, o Young foi sucinto: “Não”.
Na era das fake news, livro traça história dos boatos, desde falsificações de Shakespeare no século 18 até grandes fraudes mais recentes