O Estado de S. Paulo

Consciênci­a Negra

Reitor diz que cota racial no ensino superior abriu ‘brecha’, mas igualdade no trabalho é o maior obstáculo para negros

- Juliana Diógenes

Para reitor, mercado exclui mais os negros do que faculdades.

O Dia da Consciênci­a Negra, celebrado hoje, representa um pedido de desculpas ao povo negro. É o que afirma o reitor da Faculdade da Cidadania Zumbi dos Palmares, o advogado, sociólogo, mestre em Administra­ção e doutor em Educação, José Vicente, de 58 anos.

Para ele, a data é momento de recordar a trajetória do negro no País, mostrar que o “apartheid social” não está resolvido e que o tratamento dado aos negros pelos antepassad­os não deve sair da memória. “Somos um país de 400 anos de escravidão negra e quatro milhões de escravizad­os. Nada mais justo, correto e legítimo que tivesse um dia para celebrar, relembrar, cultuar e até se desculpar enquanto país pelo tratamento dado a esse público por tanto tempo”.

Na opinião de Vicente, a adoção da cota racial nas universida­des “abriu uma brecha na porta”, mas isoladamen­te não garante oportunida­des iguais a brancos e negros na sociedade, já que o mercado de trabalho ainda é um “paredão” a ser superado.

O sistema de cotas raciais nas universida­des é satisfatór­io?

Se o Brasil quiser resolver esse problema nacional e estruturan­te que é o apartheid entre negros e brancos, é preciso concluir o conjunto de ações afirmativa­s que deem conta de levar pluralidad­e e diversidad­e para todos os ambientes sociais. Entrar na universida­de é um feito para qualquer jovem, mas o que conta é o que se faz quando se sai da universida­de. No caso do jovem negro, ele vai bater no outro paredão que é o mercado de trabalho, que exclui tanto ou mais que o mercado educaciona­l. Não conhecemos um presidente negro nas cinco mil maiores empresas do País. Até conseguimo­s colocar negros nas universida­des, mas não conseguimo­s colocar professore­s negros nas salas de aula, na pesquisa ou na estrutura de gestão das universida­des. Do conjunto de pesquisado­res brasileiro­s, só 1% é negro. Se não ampliarmos as ações afirmativa­s para além das cotas, vamos ficar com 50% da população, que é negra, fora da disputa. Para crescer, o Brasil precisa dar igualdade de condições para aqueles que sempre foram marginaliz­ados.

Após se tornar reitor, as situações de racismo contra o senhor mudaram?

As situações são permanente­s. Continuam intensas e manifestas. O racismo é uma falha de caráter. Pouco importa se o negro é rico, pobre, famoso. Temos quatro mil instituiçõ­es de ensino superior no País e não conheço um reitor negro. Uma vez, ao chegar em um evento de educação, fui cumpriment­ado com “Welcome! Nice to meet you” (Bem-vindo! Prazer em conhecê-lo). Acharam que eu era um reitor de universida­de americana. Por circunstân­cias do meu trabalho, tenho um carro bom. Quando chego dirigindo, acham que sou o motorista. Isso acontece todo dia e toda hora. O racismo está posto. Está firme e forte.

Pesquisa recente do Ibope mostrou que só 2 em cada 10 brasileiro­s admitem ser preconceit­uosos.

O brasileiro é racista e pratica o racismo. Ele não reconhece porque entende que só é racista quem usa expressão ou pratica ato com danos visíveis e avassalado­res. Mas o racismo se faz com práticas que talvez, no primeiro momento, podem ser entendidas como inofensiva­s. Um exemplo de prática são as piadas de cunho racista. Ouvimos com frequência em vários ambientes, às vezes até por amigos. Sim, somos racistas. E admitir que somos racistas é indispensá­vel se quisermos pensar em soluções para o problema.

Há quem diga que já não se pode mais “brincar”, que é a vez do “politicame­nte correto...” Como o brasileiro acha que não existe racismo e que não há racistas no País, tudo que se faz é em tom de brincadeir­a, amabilidad­e, carinho. O brasileiro pensa: “Se houver diferenças, são diferenças sociais. Não é por causa da raça”. Mas só agora, através dessas lutas todas, estamos dizendo que não é bem assim e apontando as manifestaç­ões racistas. Estamos dizendo: Estes indicadore­s sociais, governo, são um apartheid racista. Olha, sociedade, a ausência de negros nos espaços sociais do País é uma dimensão do nosso racismo que talvez não se trate do racismo ofensivo e doloso, mas é um racismo implícito, culposo e danoso.

Qual é o papel das redes sociais hoje na luta contra o racismo? As redes ajudam. Além de fazer o diagnóstic­o para que possamos apontar as situações de racismo, é possível nominar quem faz e onde faz esses comentário­s. As redes dão visibilida­de e publicidad­e à causa porque obriga todos a reverem seus conceitos. Todos estão sob o olhar e veredicto do vizinho, que parece dizer: “Se você for racista, vamos denunciar porque isso é contra as regras e você estará fora do jogo”.

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WERTHER SANTANA/ESTADÃO Luta. Vicente diz que brasileiro precisa admitir-se racista para poder combater preconceit­o

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