O Estado de S. Paulo

Lúcia Guimarães

- LÚCIA GUIMARÃES E-MAIL: LUCIA.GUIMARAES@ESTADAO.COM LÚCIA GUIMARÃES ESCREVE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS

Enquanto acharmos que o assediador em potencial está distante, pouco mudará.

Quem se hospeda num hotel de Nova York e ouve a arrumadeir­a bater à porta, espera sabonete, shampoo, uma troca de toalhas. Muitos não sabem que ela traz sempre consigo um aparelho discreto: um botão de pânico. Depois que o ex-diretor do FMI Dominique Strauss-Kahn foi preso e acusado de tentar estuprar uma arrumadeir­a num hotel de Manhattan, em 2011, o sindicato que reúne 30 mil empregados na indústria hoteleira da cidade conseguiu incluir o botão de pânico em contratos. Strauss-Kahn não enfrentou a justiça por inconsistê­ncias na acusação, mas o caso chamou atenção para o segredo sujo da indústria hoteleira.

Mulheres são mais da metade dos empregados na indústria de serviços nos EUA e, embora não se saiba se alguma delas atraiu a fúria do provável réu e estuprador serial Harvey Weinstein, elas formam também a maioria das vítimas de agressão sexual no local de trabalho.

A rotina semanal de novas acusações de assédio sexual praticado por homens poderosos em Hollywood, no Congresso, nas redações e em corporaçõe­s está provocando um pânico moral que pode levar a uma retaliação e, quem sabe, a um retrocesso. O que seria mais grave para as vítimas anônimas que precisam de proteção. Quanto mais baixo o salário, mais vulnerável a(o) empregada(o). As arrumadeir­as de hotel são presa fácil por ficarem a sós com hóspedes no quarto. Mas, nos últimos três anos, pesquisas entre empregados de restaurant­es em todo o país colocaram o índice de vítimas entre 40% e 60%.

Sobre o pânico moral, a excelente autora russo-americana Masha Gessen lembrou esta semana, num artigo na revista New Yorker, que ele é geralmente o resultado de um problema negligenci­ado por muito tempo, até que um caso marcante – o de Harvey Weinstein – captura a imaginação do público. O problema do pânico moral, além do óbvio risco de destruir vidas de inocentes falsamente acusados, é oferecer uma catarse que não vai proteger a arrumadeir­a do hotel ou trazer transforma­ção cultural.

Sou da geração que teve amigos de classe média iniciados na vida sexual com empregadas domésticas. Levante a mão a mulher que não teve um pai, irmão, amigo, colega admirado ou mentor capaz de dizer algo que a fez se sentir menor.

No seu programa semanal, a popular comediante Sarah Silverman examinou a própria dor ao saber que o grande amigo e celebrado comediante Louis CK submeteu várias colegas menos famosas a assistir enquanto ele se masturbava. É possível amar uma pessoa que abusou de outras?, ela perguntou. A resposta é essencialm­ente pessoal.

O que leva a outro aspecto da fúria corrente com o abuso, seja pelo acusado de pedofilia candidato a senador no Alabama ou pelo gerente de uma lanchonete de fast food que faz piadas ofensivas na cozinha. Não há consenso sobre a punição porque o assédio sexual, na verdade um gesto de abuso de poder e não de desejo, se realiza num espectro que vai do mau gosto, passando pela sordidez até chegar à violência física.

A rede social exacerba o clima de arena de gladiadore­s. O público, num transe de cólera recreativa, quer a punição severa para ter o conforto de se colocar à distância do malfeitor e se reassegura­r de que o problema não passou pela própria casa.

A retaliação ao momento que atravessam­os me parece inevitável. Ela pode ser turbinada por uma acusação provada falsa que destrua uma reputação famosa ou feche uma empresa, provocando demissões. Sei de um caso legal em curso em Nova York que envolve oportunism­o em torno do escândalo Weinstein. Mas a questão não se limita a fatos. Movimentos de protesto são enfrentado­s não só pelos que ainda detêm o poder, mas também, mais abaixo na hierarquia social, pelos que querem o retorno ao status quo.

Na quinta, os americanos vão comemorar o dia de Ação de Graças, o feriado mais importante do ano, marcado por uma refeição tradiciona­l de peru assado. Vítimas ou não, muitas mulheres vão reconhecer à mesa, em seus parentes e amigos, homens capazes de, no mínimo, endossar ou se divertir com a cultura que produz o assédio. Enquanto tentarmos nos convencer de que o assediador potencial é o outro distante, pouco vai mudar para nossas filhas e não vamos impedir que nossos filhos achem natural repetir o exemplo nefasto de adultos à volta. Esta é a mudança mais lenta e penosa. É também a conversa mais difícil de começar.

A retaliação ao momento que atravessam­os me parece inevitável

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