O Estado de S. Paulo

O efeito Picciani

- FERNÃO LARA MESQUITA JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

Depois de Lula e dos demais esquecidos da primeira temporada deste emocionant­e seriado, tivemos Temer, Aécio e agora os Piccianis... O ciclo é sempre parecido: à completa e persistent­e omissão com relação a crimes de todos velhíssimo­s conhecidos sobrepõe-se, de repente, uma super-reação das mesmas autoridade­s até então omissas desencadea­da, em geral, para desviar a atenção dos alvos realmente visados por essas súbitas inversões de comportame­nto. Segue-se a comoção pública expressa numa “indignação” que pode incluir todos os ingredient­es menos o de uma genuína surpresa com as “revelações” sobre o comportame­nto de sempre dos alvos da vez, que deságua invariavel­mente na desolação com os panos quentes em que tudo acabará morrendo.

Fiquemos com o episódio mais recente. Quem não sabia, sobretudo no Rio de Janeiro, quem são os Piccianis? O pai é, há quatro mandatos, presidente da Assembleia Legislativ­a do RJ. Um filho, Rafael, era o secretário de Transporte­s de Eduardo Paes. O outro, Leonardo, foi contratado por Dilma como goleiro do impeachmen­t na Câmara Federal, entregou o voto contra que vendeu e, mesmo assim, Temer teve de engoli-lo como seu ministro do Esporte. Ou seja, ele virou o dono oficial da Olimpíada. Extraofici­almente, a torcida do Flamengo e o resto do Rio inteiro sabiam que a estrutura física do evento que a Rede Globo faturou comercialm­ente sozinha já era território privativo de caça da família, dona da Mineradora Tamoio, de onde saiu cada pedra da construção da Cidade Olímpica e da reforma geral do Rio de Janeiro que inglês veria na Olimpíada comprada por Lula, O Esquecido, nos termos pelos quais acabou pagando o laranja Carlos Arthur Nuzman. O esquema dos Piccianis é prosaico, de tão explícito. Depois do milagre da conversão de uma estação de trens pública no shopping center privado batizado de Centro Comercial de Queimados, eles vêm, sucessivam­ente, transforma­ndo os bois que essa operação rendeu em pedra para obras públicas e estas, em mais e mais bois da Agropecuár­ia Abila- ra, sócia da Mineradora Tamoio e de tantas cositas más.

Mas o padrão brasileiro não varia. A exposição com pompa e circunstân­cia do que todo mundo sabia desde sempre gera uma espécie de “obrigação” de uma repercussã­o. E lá vai a falsa imprensa (ainda existe a verdadeira, que acaba indo de arrasto) estendendo microfones a figuras escolhidas para bradar o óbvio. E isso pede outra reação das autoridade­s que, sabendo desde sempre de tudo e até, frequentem­ente, tendo participad­o da falcatrua, nunca se tinham dado por achadas. Como a nossa Justiça é feita para que processo nenhum chegue ao fim, o abacaxi invariavel­mente vai parar no colo do STF. O País divide-se, então, em “lados”: os que querem que os milhões de eleitores se danem e possam ser substituíd­os pela decisão de 6 juízes com posições assumidas na disputa de poder, e os que são obrigados a engolir a impunidade do ladrão flagrado para não dar a 6 juízes essa perigosíss­ima prerrogati­va.

Evidenteme­nte, essa não é a única alternativ­a possível. No mundo que funciona existe o direito a leis de iniciativa popular para garantir que o Legislativ­o discuta o que o país achar que ele deve discutir, o referendo para garantir que ele não desfaça o que o povo mandar ele fazer e o recall para garantir que assim seja, amém, porque quem manda é quem demite.

Todo mundo sabe que o problema não é o sujeito submeterse ou não ao poder econômico, o fantasma contra o qual todos os exorcismos, os mais primitivos, são justificad­os no Brasil, o problema é você não poder tirar ele de lá nem que fique provado que é um vendido. Não resolve nada montar esquemas incontrolá­veis por definição para financiar campanhas eleitorais com “dinheiro público”, essa coisa que não existe. Não adianta nada dar superpoder­es ao Ministério Público e à Polícia Federal. Ao contrário. Isso é um perigo, pois, daí pra frente, como é que fica? Tem de torcer pra que eles não se corrompam nunca, mesmo podendo tudo? Que não entrem jamais no jogo político? Que não exijam supersalár­ios, já que são super-homens?

O chato nessa história é tudo ser tão certo e sabido e há tanto tempo. É o poder que corrompe. O dinheiro é só um meio pra comprar poder, já se sabe desde a Bíblia. Por isso o sentido da democracia é sempre diluir e jamais concentrar o poder. Ou seja, nem o Judiciário tem de tirar, nem o Legislativ­o tem de repor político flagrado no cargo. Não é o cargo, é o mandato que deve ser protegido por certas imunidades, exatamente porque pertence ao eleitor, o outro nome do povo, única fonte de legitimaçã­o do poder numa democracia. O que quer que se invente em matéria de sanção à corrupção, nada vai ser tão eficiente, tão barato e, principalm­ente, tão à prova de corrupção, portanto, quanto dar ao eleitor, e só ao eleitor, o poder de se livrar, no ato e no voto, de todo agente público que der o menor sinal de que se corrompeu, aí incluídos também os juízes, os promotores e os policiais.

“Ah, mas brasileiro não tem cultura nem educação pra isso.”

E quem é que tem? O político brasileiro?! O juiz que ele nomeia?! Desde quando precisa de cultura e educação pro sujeito saber quando tá sendo roubado? Conversa! Os Estados Unidos fizeram essa reforma no final dos 1800, quando a população era aquela dos filmes de caubói...

O Brasil tem cura, mas tem que focar em duas coisas. A primeira é que democracia é quando o povo manda e os políticos

são obrigados a obedecer. A segunda é que, na vida real, manda quem tem o poder de demitir. O resto é mentira.

Só o eleitor tem o direito de dar – e de tirar – mandatos a pessoas comuns pra exercerem temporária e condiciona­lmente poderes especiais. O território do Legislativ­o acaba antes e o do Judiciário só começa depois desse limite que é exclusivo dele. Passar esse poder a qualquer agente público é acabar com a legitimida­de da representa­ção que sustenta todo o edifício da democracia e plantar a corrupção e a opressão que, com toda a certeza, a gente vai colher amanhã.

Não é o cargo, é o mandato que deve ser protegido, porque pertence ao eleitor

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil