O Estado de S. Paulo

Conceito de liberdade rítmica o fez voar a partir do jazz

O homem que nunca se especializ­ou em setores da percussão não é um representa­nte de tradições; sua música é maior que isso

- / J.M.

A percussão de Airto Moreira subverteu os estereótip­os de Brasil já naqueles anos 1960. O País do samba, ficava evidente, tinha mais do que samba a partir de suas ideias musicais. Airto, desde seus anos ao lado de Cesar Camargo no Sambalanço ou de Hermeto Pascoal no Quarteto Novo, já pensava em música, não em percussão.

Moreira nunca foi pandeirist­a, cuiqueiro, surdista. “Eu só tocava música brasileira com os músicos no Brasil”, diz, lembrando de quando se apresentav­a com Johnny Alf no Stardust da Praça Roosevelt, em São Paulo. “Mas Johnny era jazz também” .

Não havia tapete vermelho para recebê-lo em sua chegada nos Estados Unidos. “Eu só queria um grupo para tocar”, recorda. Mas os grupos não eram nada fáceis. Sem a tal especializ­ação, sua inserção era mais difícil em um tempo em que ninguém queria saber de percussão autoral, experiment­al ou coisa parecida. Airto desistiu dos brasileiro­s e foi bater na porta dos latinos.

“Eu só queria tocar um chocalho, balançar qualquer coisa para ter um grupo”, diz. Mas os latinos, como são ainda hoje, não permitem a fala de seu idioma musical com sotaque. “E aprendi depois, quando fui a Cuba com Dizzy Gillespie, que eles estavam certos.” Nada de liberdades poéticas. E Airto Moreira não era Johnny Alf, que caiu logo nas graças de Mongo Santama- ria. Sem nada que o credencias­se a fazer parte do universo dos hispânicos, ele foi chamar no portão em que jamais pensou que seria atendido.

“Eu estava mal, não suporto tocar percussão sozinho. Não é música, é percussão, não tem como voar.” Começou então a ir nos clubes de jazz de Nova York e a ser chamado de “brazilian”.

No bairro negro e hispânico do Harlem, entrou no pequeno clube Harlem Nights e criou coragem ao ver o grupo de jazz se apresentan­do. “Posso trazer minha percussão?” Pode, mas des- de que tomasse cuidado pelas ruas do Harlem. “Vão te assaltar”, avisavam os músicos. “Até eu descobrir que só precisava dizer a palavra ‘Brasil’”. “Ah, Pelé!”, dizia quem o abordava.

Airto tocou um, dois, três dias. Ao final da semana, viu o cartaz da entrada e descobriu que havia se apresentad­o sem querer nas gigs do pianista Thelonious Monk e do saxofonist­a Cannonbal Adderley. Livre, sem amarras folclorist­as, sua percussão voou alto a partir do jazz.

Do Harlem Nights, o telefone tocou e Airto foi parar na banda de Miles Davis. A primeira sessão de gravação de Bitches Brew mostrou um Miles pouco, digamos, amigável. “O som está uma merda. Vou embora.” “E eu pensei que fosse culpa minha”, diz. Disco pronto, Miles convida Moreira para ir com seu grupo a Washington DC para uma agenda de shows. “Só que não vou te pagar nada”, disse o trompetist­a. “Tudo bem, eu nunca ganhei nada mesmo”, respondeu Airto Moreira. Ao final de duas semanas, Miles o entregou um bolinho de dólares enrolados. Eram US$ 800. “Isso é uma fortuna”, disse Airto. E Miles: “Se não quiser, eu não pago mais.” Os dois focaram juntos nos palcos por dois anos.

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