O Estado de S. Paulo

Um papa do papo

- HUMBERTO WERNECK HUMBERTO WERNECK ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Enão é que o Afonso Borges, incansável divulgador da literatura alheia, passou para o outro lado do balcão? Não, não é assim que se deve dizer.

Incansável divulgador da literatura alheia, o Afonso acaba de instalar-se também no outro lado do balcão.

Ou melhor: com Olhos de Carvão, coletânea de contos lançada pela Record, Afonso Borges está solidifica­ndo uma posição que, timidament­e, já ocupava no outro lado do balcão.

De fato: Olhos de Carvão está longe de ser a obra de estreia de um autor que, já faz tempo – desde os 18 anos –, vem delivrando escritos seus nas searas da poesia, da literatura infantil e da não ficção. Tudo, porém, meio na moita, e mais, moita mineira, especialme­nte densa e enganosa, como se escrever fosse, para ele, habitar de raro em raro um puxadinho de sua atividade principal, a de espalhar por aí boa literatura dos outros.

Difícil, a esta altura, encontrar alguém letrado que ainda não tenha ouvido falar do Sempre um Papo, projeto bolado pelo Afonso Borges, há mais de 30 anos, com o objetivo maior de incentivar a leitura no Brasil. Mas, vamos lá, mesmo com o risco de chover no molhado (clichê, apresso-me em dizer, devidament­e consignado na página 49 da 2ª edição do meu O Pai dos Burros – Dicionário de Lugares-comuns e Frases Feitas).

Sua fórmula, tão simples quanto bem-sucedida, consiste em botar sob as luzes alguém que esteja lançando livro relevante, e, com direito à participaç­ão do público, entabular um papo ao qual se seguirá sessão de autógrafos. Não há hoje editora brasileira que não queira ter autor seu sob aquelas luzes. Se o Chico Xavier, lá onde está, se é que saiu daqui depois de haver desencarna­do, vier a psicografa­r obra que o mereça, é bem provável que o Afonso Borges mande instalar mesa branca no auditório. E, magnânimo, aceitará que baixe ali, numa versão incorpórea, até mesmo o espírito espirituos­o de Millôr Fernandes, que, ainda na versão carne e osso, faltou, sem avisar, ao compromiss­o que tinha com uma casa apinhada, deixando o anfitrião Afonso no aperto que se pode imaginar.

Nada escapa ao bom faro de quem, nessas três décadas de Sempre um Papo, ao longo de nada menos de 6 mil eventos, provocou a palavra de milhares de autoras e autores, entre eles dois premiados do Nobel, José Saramago e Mario Vargas Llosa. Feito maior, só se o Afonso convencess­e (não duvido) o Jorge Mario Bergoglio, codinome Francisco, a se abalar de Roma para um Sempre um Papa.

Mas o assunto, aqui, não é um projeto que, nascido num boteco de Belo Horizonte em 1986, tem hoje abrangênci­a nacional – já acendeu suas luzes em algumas dezenas de cidades em 8 Estados brasileiro­s e, até mesmo, por um ano, na Casa de América, em Madri. Suas noitadas, nesse momento, fazem parte também da programaçã­o do Sesc Bom Retiro, em São Paulo. O assunto não é, tampouco, um evento anual como o Fliaraxá, por ele implantado no Triângulo Mineiro em 2012, cuja edição 2017, com estrelas como Mia Couto, encerrou-se no domingo passado. Mas o assunto, aqui, é outro, é o Afonso Borges escritor, aquele que agora pisca para o leitor com Olhos de Carvão.

E, de cara, me pergunto onde é que esse bicho-carpinteir­o da literatura arranja tempo também para escrever, envolvido que está como atividades que, além das já citadas, incluem redigir e ler no rádio suas colunas do Mondolivro, além daquelas que produz como colunista do portal O Globo. (Esqueci alguma coisa, Afonso? Carta à Redação, por favor.)

Curiosamen­te, os 26 escritos que ele reuniu em Olhos de Carvão não parecem ter sido produzidos nos breves espaços que lhe permite sua maratona de agitador e promotor cultural. Sem pretensão a alta literatura, são histórias, vinhetas, flagrantes captados por um observador sagaz & capaz, dotado para ver o que há por detrás das aparências, e para destilar seus achados, não raro sutis, com a mão delicada e bem-vinda economia de pa- lavras. Coisa de cineasta afiado, pensei ao ler Olhos de Carvão.

Afonso Borges, felizmente, não se mete a revolucion­ar a arte literária, nem se propõe a convulsion­ar a sintaxe, com o risco de destroncar os miolos do pobre leitor, como também não se aventura a sacar conclusão ou moral da história. Limita-se a mostrar. Aquilo que João Cabral de Melo Neto volta e meia dizia, adaptando frase de Paul Eluard: escrever é dar a ver com palavras. (Mas nem por isso, pelo amor de Deus, mera reprodução jornalísti­ca da chamada realidade). Dizia também que não deve o poeta “perfumar sua flor”, “poetizar seu poema”. Não sei se Afonso Borges, em sua atravancad­a rotina de difusor das letras, já encontrou tempo e sossego para ler Alguns Toureiros, de João Cabral, mas sua preocupaçã­o me parece ser a mesma ali expressa: não forçar a mão. O leitor que se vire.

Se assim é, não me peça que aponte as minhas preferidas entre as 26 histórias de Olhos de Carvão. Até porque me parecem todas elas merecedora­s de leitura. A lamentar, apenas a circunstân­cia de que o Afonso Borges não possa convidar a si mesmo para um Sempre um Papo. Posso garantir que seria um sucesso.

Divulgador da literatura alheia, Afonso Borges pulou para o outro lado do balcão

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