O Estado de S. Paulo

Nunca conheci um único lugar

- miles@estadao.com É O HOMEM MAIS VIAJADO DO MUNDO. ELE ESTEVE EM 183 PAÍSES E 16 TERRITÓRIO­S ULTRAMARIN­OS

‘Vivemos em um complexo mutante de forças que nos chama a voltar e reconhecer’

Infelizmen­te, Annie Brown, a amiga jornalista de Mr. Miles (veja a coluna da semana passada; bit.ly/miles1411), voltou rapidament­e à Inglaterra em função dos acontecime­ntos poucos louváveis à nossa imagem, relativos aos assaltos durante o evento automobilí­stico de Interlagos. De forma que não pôde sequer usufruir das raras dicas de Mr. Miles sobre o Brasil.

Essas, por sua vez, geraram a polêmica esperada. “Subestimei, my friends, a quantidade de bordoadas verbais que acabaria levando. Leitores de inúmeros lugares não citados crivaram-me de imprecaçõe­s. Muitos deles provinham de municípios – I’m ashamed to say – dos quais nunca tinha ouvido falar e mencionava­m belezas tais quais o mais antigo umbuzeiro de um determinad­o ecossistem­a e a jazida onde foi encontrado o maior exemplar de citri- no já extraído no país.

Sou grato a todos, sobretudo à bela Juliana Telma, que vem fazer um curso em Londres e quer me conhecer. Será bem-vinda, sweetheart.

A seguir, a pergunta da semana:

Mr. Miles: quando alguém pode considerar que, de fato, conhece um lugar?

Gemma Novara, por e-mail

“Well, my dear: sou forçado a responder o que todos esperam. Jamais! Never! Mai! (suponho que você me compreenda, em função de seu lindo nome). Essa é a intermináv­el beleza da busca, assim como seu inerente fracasso. Cada vez que penso nisso, ocorrem-me novas humildes teorias a respeito. Ainda que eu ficasse sentado todos os dias de minha vida em um mesmo banco, vendo a mesma paisagem, eu seria, un-doubtly, incapaz de conhecê-la. As estações passariam e ela se modificari­a com a chuva, a neve e o calor; a posição do sol alteraria suas sombras; as plantas cresceriam ou murchariam; o vento empurraria o que pudesse com sua força; um empreended­or à distância alteraria o equilíbrio de seu ecossistem­a; uma espécie de aves bateria asas para longe; uma guerra sempre provável nesse mundo beligerant­e talvez tivesse o dom de mudar a forma das Colinas e o caminho das águas.

E eu talvez nem percebesse, porque estava lá. However, dear Gemma, cada vez que voltasse estaria vendo um outro lugar.

Repare, darling, que me referi a um banco e uma paisagem e nem sequer a detalhei. Imagine se eu o tivesse feito com uma cidade, onde a dinâmica é muitíssimo maior. As ruas se alargam, prédios substituem praças, casas viram parques, bares tornam-se lojas, referência­s vão e vêm ou somem e deixam-nos órfãos. Nem as nossas próprias cidades conhecemos – e isso é bom porque não vivemos num mundo triste como um grito parado no ar. Vivemos, on the other hand, em um complexo mutante de forças que sempre nos chama a voltar e reconhecer.

(E é por elas que temos de ser atraídos, não por essas notícias rasas e eletrônica­s que passam o tempo nos chamando de um lugar ao outro – porque elas não vivem de nos ensinar, mas de nos puxar para o lado delas, contabiliz­ar-nos e good- bye.)

Voltando ao assunto, cara Gem- ma, como é possível considerar conhecido um lugar que a cada dia pode sediar outra história. Refiro-me, of course, a pontos marcantes da manifestaç­ão humana, à Praça da Paz Celestial, à Times Square, à Trafalgar Square, à Praça Taksim, à vermelha e a tantas outras ao redor do planeta, que já se vestiram de sangue ou tonitruara­m palavras de ordem na tentativa de mudar o rumo dos povos.

Eu mesmo já estive muitas vezes na Praça Tahir, no Cairo, observando a complicada lógica de seus veículos andando em todas as direções, com as buzinas sempre apertadas, entre carregador­es de mercancias diversas, cantos, imprecaçõe­s, África e Ásia em único cenário que de tão caótico chegava a ser bucólico. Believe me. E, no entanto, jamais estive lá em seus momentos de libertação e de dor. Como posso dizer que a conheci?”

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