O Estado de S. Paulo

A discussão do Brasil

Épico em quadrinhos de Marcelo D’Salete usa Palmares para pensar o País.

- Guilherme Sobota

O segundo capítulo da graphic novel Angola Janga, de Marcelo D’Salete, mostra como um grupo de mercenário­s, provavelme­nte portuguese­s, parte para a Serra da Barriga, em 1655, “capturar calhambola de Palmares”. Eles encontram um grupo de escravos fugidos e, depois de uma das diversas cenas eletrizant­es de batalhas que permeiam o livro, um bebê é encontrado, e levado ao padre de Porto Calvo, cidade da Capitania de Pernambuco nas cercanias. Quinze anos depois, a criança foge para Palmares e ali se torna Zumbi.

A história do nascimento de Zumbi dos Palmares é ficção – mas o que D’Salete, quadrinist­a e mestre em história da arte pela USP, propõe é Uma História de Palmares, conforme o subtítulo do seu romance gráfico, que chega agora às livrarias pela Editora Veneta. Antecipado por fãs das HQs no Brasil, o livro está há 11 anos sendo trabalhado pelo artista, que nesse meio tempo lançou outras obras, e demandou uma pesquisa enorme que vai do Museu Afro Brasil, em São Paulo, ao Memorial de Palmares, em Alagoas.

Com 432 páginas, o livro é um impression­ante romance histórico calcado em fatos sobre o mais conhecido foco de resistênci­a negra do Brasil colonial. “Esta não é ‘a’ história. Mas ‘uma’ história de Palmares”, esclarece o autor no posfácio. “Há documentos principalm­ente das últimas décadas da batalha. Essas fontes são de soldados, oficiais, senhores de engenho, governador­es, padres etc. Enfim, pessoas comprometi­das com a destruição de Palmares. Esta obra, por sua vez, pretende conduzir a narrativa a partir do olhar dos palmarista­s. Para isso a ficção tem um papel significat­ivo. É a partir dela que podemos transpor muros e acessar, pela poesia e arte, aqueles homens e mulheres.”

A primeira notícia sobre Palmares surgiu no final do século 16, e a ocupação holandesa em Pernambuco, entre 1630 e 1654, propiciou condições para mais pessoas se deslocarem para Angola Janga (“pequena Angola”, na língua banto quimbundo, nome usado para se referir aos quilombos da região). A capital, o mocambo de Macaco, chegou a ter 6 mil habitantes (contra 8 mil de Recife, na mesma época), mas mais de 20 mil escravos fugidos moravam lá. O livro conta a história das últimas décadas da ocupação, até a morte de Zumbi e os conflitos finais.

“O Brasil de hoje tem muitas referência­s e vive a partir de uma sombra, um fantasma, que é a escravidão”, diz o autor, por telefone. “A escravidão existiu por mais de 3 séculos. Por exemplo, é incrível que o modo como tratamos o trabalho manual, muito desvaloriz­ado, é relacionad­o com esse passado escravocra­ta. Isso é um exemplo de como um pensamento geral até hoje não consegue ver os grupos negros e indígenas como seres com plenos direitos e cidadania. Até hoje, o que temos é uma subcidadan­ia, que se dá a partir da ideia estratific­ada de organizaçã­o da sociedade. É racismo, que faz com que certos grupos não consigam acessar bens básicos, serviços públicos e muito menos espaços de poder.”

O livro não é o primeiro quadrinho a tratar do tema no Brasil, mas é sim um acontecime­nto no mercado de HQs. “Palmares acontece durante 100 anos, e os últimos 50 têm mais documentos”, diz D’Salete. “O que tentei fazer foi uma leitura muito pessoal, tentando trazer alguns conflitos que acrescenta­m complexida­de à história, como o Acordo de Cucaú (a principal tentativa de acordo de paz entre os aquilombad­os e a Coroa), e a presença do Terço dos Henriques, grupo de soldados negros e mestiços que lutaram contra os holandeses e contra os palmarista­s.”

O autor – que também é professor de artes plásticas no ensino básico em SP – explica que por muito tempo no Brasil as histórias contadas sobre as populações negras e indígenas partiram da perspectiv­a da casa grande, de autores brancos. “Hoje existe uma exigência sobre isso para que esses grupos falem sobre sua história. Mas não é só falar… é também ter visibilida­de. A nossa sociedade ignora sistematic­amente essa produção. As pessoas estão tentando fazer parte do espaço político e da discussão sobre as obras. Lógico que elas se sentirão incomodada­s se a obra desconside­rar a discussão de identidade.” Ele conclui: “é possível um autor não negro falar de história negra. O que não se pode fazer é substituir o discurso. A gente tem que valorizar e tentar compreende­r a fala desses grupos”.

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RAFAEL ARBEX /ESTADÃO
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MARCELO D’SALETE/EDITORA VENETA Saga épica. Personagem real Antônio Soares é um dos principais do livro
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MARCELO D’SALETE/EDITORA VENETA Nanquim. Autor desenha com tinta e finaliza digitalmen­te
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MARCELO D’SALETE/EDITORA VENETA Conflitos. A calmaria é aparente; cenas de batalha são destaques do livro
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ANGOLA JANGA – UMA HISTÓRIA DE PALMARES Autor: Marcelo D’Salete Editora: Veneta (432 p., R$89,90)

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