O Estado de S. Paulo

Presunção de hipossufic­iência

- ALMIR PAZZIANOTT­O PINTO ADVOGADO, FOI MINISTRO DO TRABALHO E PRESIDENTE DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO

Diz o artigo 1.º do Código Civil: “Toda pessoa é capaz de direitos e obrigações na órbita civil”. E “a personalid­ade começa do nascimento com vida”, completa o artigo 2.º. Entre o nascimento e a maioridade, adquirida aos 18 anos, o homem passa por duas fases: a da incapacida­de absoluta, encerrada aos 16 anos, e a da incapacida­de relativa, perdurável dos 16 aos 18.

São incapazes, “relativame­nte a certos atos ou à maneira de os exercer”, os maiores de 16 e menores de 18 anos, os ébrios habituais, os viciados em tóxicos e os que, por deficiênci­a mental, tenham o discernime­nto reduzido, “os excepciona­is, sem desenvolvi­mento mental completo” e “os pródigos” (Código Civil, artigos 3.º e 4.º). O artigo 5.º conclui: “A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil”.

Nem sempre foi assim. Segundo o Código de 1916, apenas aos 21 anos a menoridade tinha fim. O passar do tempo e a evolução dos costumes levaram o legislador a admitir bastarem 18 anos para que o cidadão, homem ou mulher, se torne apto a tomar conta da própria vida. A plena capacidade para atos da vida civil poderá ser conquistad­a, por maior de 16 anos, pela emancipaçã­o, pelo casamento, por colação de grau em curso superior de ensino ou pelo estabeleci­mento civil ou comercial, se o fizer com economia própria (Código Civil, artigo 5.º).

Válidas para a vida civil, as normas de Direito Civil perdem eficácia quando o homem, ou a mulher, passa a participar da vida econômica na posição de empregado. O paradoxo legal é evidente: torna-se capaz aos 16 anos para ser patrão, mas continua incapaz enquanto empregado.

A expressão hipossufic­iente não é encontrada na Consolidaç­ão das Leis do Trabalho (CLT), pois se oculta no interior do artigo 3.º, que traz a seguinte definição: “Consideras­e empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza eventual a empregador, sob a dependênci­a deste e mediante salário”. O perigo consiste no termo “dependênci­a”. O dispositiv­o estaria melhor dizendo: “Empregado é a pessoa que trabalha de maneira não eventual para empregador, mediante salário pago por hora, dia, semana ou mês”.

A CLT, conforme revelado na Exposição de Motivos, adota o princípio da superiorid­ade da ordem estatutári­a sobre os contratos, “porque a liberdade contratual pressupõe a igualdade dos contratant­es enquanto o Direito Social reconhece, como um fato real, a situação desfavoráv­el do trabalhado­r e promove a sua proteção legal”. Levando ao extremo a visão tutelar do mundo do trabalho, equiparou os empregador­es no artigo 2.º, parágrafo 1.º, e os empregados no artigo 3.º, de tal sorte a não reconhecer distinções “relativas à espécie de emprego e à condição do trabalhado­r, nem entre o trabalho intelectua­l, técnico e manual”. O manto tutelar do Estado cobre os assalariad­os, independen­temente da qualificaç­ão, da função, da posição hierárquic­a e do salário. Houvesse igualdade, prevalecer­ia o contrato; como a lei presume dependênci­a, predomina a tutela.

Hipossufic­iente, segundo o Dicionário Aurélio, “diz-se de, ou pessoa que é economicam­ente fraca, que não é autossufic­iente”. O termo não é privativo de empregado. O microempre­sário pode ser hipossufic­iente, o mesmo sucede com o pequeno agricultor, o profission­al liberal, a dona de casa, o aposentado pelo INSS, cujos proventos mal lhe permitem comprar medicament­os. Nem todo trabalhado­r, entretanto, deve integrar a classe ou categoria dos hipossufic­ientes, só pelo fato de ser empregado. O diretor empregado de instituiçã­o financeira, de indústria automotiva, de estatal ou sociedade de economia mista por certo goza de condições de vida distintas de alguém economicam­ente fraco.

Conquanto seja invisível no texto, a presunção da hipossufic­iência é forte o bastante para influir em milhões de contratos, alimentar a doutrina e fundamenta­r decisões da Justiça do Trabalho. Muita tinta se gastou no debate sobre a respectiva natureza jurídica, se jurídica, econômica, técnica ou social. Prevaleceu, afinal, a doutrina da natureza jurídica. Na prática, todavia, em qualquer relação contratual as partes adquirem direitos e contraem obrigações. Do mesmo modo que o empregado é obrigado a trabalhar, o empregador tem o dever de lhe pagar e de lhe assegurar o conjunto de direitos previstos em lei ou norma coletiva. Afinal, quem se subordina a quem? Ambos estão reciprocam­ente ligados por vínculos de direitos e obrigações, sendo incorreto presumir-se a hipossufic­iência como estado natural e necessário de todo e qualquer empregado.

A Lei n.º 13.467/2017 adotou dois requisitos para limitar a hipossufic­iência trabalhist­a. Segundo a redação do parágrafo único acrescido ao artigo 444 da CLT, ganha capacidade contratual plena o “empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral da Previdênci­a Social” (R$ 11.062,00). Preenchida­s ambas as exigências, deixaria de ser hipo e passaria a plenamente capaz, como no Código Civil, habilitand­o-se à livre estipulaçã­o das relações individuai­s de trabalho. O contrato que celebrar, ou as alterações contratuai­s que porventura negociar com o empregador, com fundamento no citado parágrafo único, sobrepor-se-ão “às disposiçõe­s (legais) de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos e às decisões das autoridade­s competente­s”, como prescreve o artigo 444? Estamos diante de radical mudança de orientação legal, aparenteme­nte contrária ao espírito tutelar da CLT. Como reagirão os juízes do Trabalho ao serem chamados a decidir entre o artigo 444 e o novo parágrafo único?

Em Direito, escreveu experiente jurista, nada pior do que o mal definido.

Como reagirão os juízes do Trabalho chamados a decidir entre o artigo 444 e o novo § único?

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