O Estado de S. Paulo

O golpe ‘legal’ de Morales

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Adecisão do Tribunal Constituci­onal da Bolívia, que autorizou o presidente Evo Morales a disputar um quarto mandato, atropeland­o a Constituiç­ão – cujas disposiçõe­s referentes a essa questão ainda foram reforçadas pelo resultado de um referendo, realizado no ano passado –, vem demonstrar que está bem viva a triste tradição que transformo­u aquele país no recordista de golpes de Estado. Com a diferença de que desta vez o lobo do golpe veio vestido com pele de cordeiro: em vez de tanques nas ruas, uma marota decisão judicial, urdida por Morales.

Por unanimidad­e, o Tribunal julgou procedente recurso do governo, no qual ele alegou que o que dizem a Constituiç­ão e a Lei Eleitoral não se aplica à pretensão do presidente. Os malabarism­os jurídicos – se é que a palavra pode ser usada nesse caso – usados para justificar a decisão favorável a Morales só podiam mesmo ser dignos de um golpe, tal a clareza do que estabelece a Constituiç­ão. Ela limita a possibilid­ade de eleição a dois mandatos. O golpe legal de Morales, porém, nada tem de surpreende­nte, já que é uma repetição.

No poder desde 2006, o presidente deveria afastar-se ao fim de seu segundo mandato em 2015. Mas, graças a uma decisão do mesmo Tribunal, pôde disputar um terceiro mandato na eleição de 2014. O argumento capcioso aceito pelos juízes amigos foi de que o país foi “refundado” em 2009 pela nova Constituiç­ão, promulgada durante o governo do atual presidente. Logo, a contagem para a reeleição deveria ser feita não a partir do primeiro mandato obtido por Morales, mas do primeiro exercido sob a nova Carta Magna.

Não satisfeito com três mandatos, o presidente levou o Tribunal a uma patética ginástica para lhe conceder a possibilid­ade de mais um. De nada adiantou a decisão do eleitorado que, em referendo realizado em fevereiro de 2016, disse não à possibilid­ade do quarto mandato. Prevaleceu o esdrúxulo argumento de que impedir Morales de concorrer mais uma vez seria limitar seus direitos políticos, o que violaria acordos internacio­nais assinados pela Bolívia. O principal seria o Pacto de San José, assinado no âmbito da Organizaçã­o dos Estados Americanos (OEA), que estabelece o direito dos cidadãos de elegerem e serem eleitos em consultas periódicas por voto universal e secreto.

Concluir daí, como fizeram os juízes amigos de Morales, que pode haver tantas reeleições quantas quiserem os detentores do poder é algo que só pode receber o nome de golpe, logo dado por líderes da oposição boliviana à decisão do Tribunal Constituci­onal. “Evo Morales desconhece a própria Constituiç­ão, dá um golpe na vontade popular expressa no referendo de 2016 e mente reiteradam­ente para se manter no poder”, declarou o ex-presidente Jorge Quiroga. Para ele, os juízes agiram como “capangas a serviço de Evo”. O líder do partido de oposição Unidade Democrátic­a, Samuel Doria Medina, classifico­u a decisão sobre o quarto mandato de ilegítima e disse que Morales quer se “eternizar” no poder. A oposição já deixou claro que deve recorrer da decisão à OEA.

Além de a OEA não ter condições de impor à Bolívia uma decisão que contrarie Morales e seu tribunal amigo, é preciso considerar também a habilidade do presidente neste caso. O que o Tribunal Constituci­onal decidiu vale não só para ele, como também para os governador­es, prefeitos e vereadores. Os beneficiár­ios são tantos e tão influentes que se torna muito difícil revogar a decisão.

Morales se vale ainda do fato de que a Bolívia, campeã de golpes de Estado – os dos tanques nas ruas – com 160, desde a independên­cia, vive um período estabilida­de tanto política como econômica, com as finanças em ordem. Nesse ponto, Morales se diferencia do seus colegas bolivarian­os, a começar do venezuelan­o Nicolás Maduro, que mergulhou seu país numa profunda crise.

Mas isso não justifica golpes de Estado com ares de “legalidade”. Resta esperar que na eleição presidenci­al de 2019 os bolivianos repitam o repúdio à aventura antidemocr­ática de Morales, expresso no referendo de 2016.

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