O Estado de S. Paulo

Fernando Reinach

- FERNANDO REINACH E-MAIL: fernando@reinach.com É BIÓLOGO

Entre os bonobos reina a igualdade entre os sexos, ou leve dominância das fêmeas.

Aavalanche de casos de homens idosos e poderosos que usam o poder para intimidar e obter prazer sexual de mulheres jovens e belas trouxe à tona um segredo muito mal guardado. Mais importante: esses casos demonstram a existência de rachaduras e vazamentos na fina casca que a cultura, a moral e a religiosid­ade depositara­m sobre nós nos últimos milênios.

Hoje essa casca recobre nossa natureza biológica. Por traz da casca rachada existe um mamífero altruísta e colaborati­vo, mas também agressivo, predador e violento, que sobreviveu durante milhões de anos, matando para comer e buscando a reprodução a qualquer custo.

Todo animal, do sapo ao Homo sapiens, só existe porque todos os ancestrais, desde seus pais e avós até os mais remotos, sem nenhuma exceção, foram bem-sucedidos. Conseguira­m reproduzir e deixaram descendent­es.

É sobre essa atividade que a seleção natural é implacável. Ela é composta por duas tarefas inter-relacionad­as. A primeira é garantir a sobrevivên­cia do indivíduo até a maturidade sexual. Isso significa obter alimento e evitar se transforma­r em alimento.

A segunda é garantir a sobrevivên­cia da espécie. Isso significa encontrar um parceiro sexual, copular e garantir a sobrevivên­cia dos filhotes. E não se iluda: a busca desses objetivos é compartilh­ada entre os sexos e, se você não tiver sucesso, vai ser o último de sua linhagem.

Não sabemos como era o animal que foi recoberto por essa crescente casca de cultura e moral. Para conhecê-lo, precisaría­mos voltar no tempo mais ou menos 1 milhão de anos, quando os ancestrais de nossa espécie viviam por aqui.

Dessa época só sobraram ossos e é muito difícil inferir comportame­ntos éticos, sexuais e sociais com base neles. E não conhecemos os componente­s dessa camada de civilidade ou como ela foi construída (foi o que Freud tentou explicar). O que sabemos é que hoje, do lado de fora da casca, é inadmissív­el um homem usar seu poder para extrair favores sexuais.

Sem acesso ao nosso passado, o melhor que podemos fazer é observar como se comportam as espécies mais semelhante­s, no caso os grandes macacos, chimpanzés, bonobos e gorilas. Mas esses dados devem ser vistos com cautela, pois essas espécies se separaram de nossa linhagem milhões de anos atrás. De qualquer modo é interessan­te identifica­r nesses animais comportame­ntos que envergonha­damente observamos entre nós.

De maneira simplista, nos gorilas um único macho tem o monopólio das fêmeas. Esse monopólio depende de seu poder como indivíduo. Ele é maior, mais velho e, vejam, tem pelos brancos.

Os outros machos podem tentar, pela força da competição, substituir o chamado macho alfa (uma nomenclatu­ra que adotamos recentemen­te para homens poderosos). Já as fêmeas do bando competem por seu lugar na hierarquia e as mais poderosas têm acesso privilegia­do aos bens materiais garantidos pelos machos poderosos (lembra algo?). No caso o bem mais valioso é a carne. Em raros casos, a troca de sexo por carne foi observada.

Nos chimpanzés é diferente. O bando tem muitos machos e fêmeas, e ambos os grupos se organizam de maneira hierárquic­a. Existem casais poderosos (geralmente mais ricos em privilégio­s alimentare­s) e casais menos poderosos.

Como esses animais não são monogâmico­s, esses arranjos não só são dinâmicos, mas machos mais agressivos têm acesso a mais fêmeas.

Mas, para você não pensar que em todos os nossos parentes os machos têm o poder e as fêmeas são objetos sexuais que brigam pela atenção do macho poderoso, vale a pena conhecer os bonobos. Muito semelhante­s aos chimpanzés, mas com uma organizaçã­o social muito diferente.

Entre eles reina a igualdade entre os sexos, ou muitos acham que existe uma leve dominância das fêmeas. No bando, o sexo é livre e é praticado diversas vezes por dia com diversos parceiros. Fidelidade nem imaginar.

O prazer sexual é fundamenta­l, o ato sexual muitas vezes é praticado com os casais de frente e as fêmeas são receptivas quase todo o ano. Elas possuem órgãos sexuais chamativos e clitóris muito desenvolvi­dos. O sexo é praticado para dirimir conflitos, reduzir a agressivid­ade e aparenteme­nte pelo simples prazer de fazer sexo. Gostou?

Apesar do comportame­nto dessas espécies (que também são recobertas por um tênue verniz social e moral) serem observadas de formas análogas em nossa espécie, o fato é que essas observaçõe­s têm um valor limitado para conhecermo­s o ser vivo que está por trás desse verniz rachado que hoje domina o planeta.

Esse animal, o Homo sapiens, muitas vezes age, como dizemos de maneira pouco apropriada, como um verdadeiro animal predador.

A seleção natural é implacável e envolve maturidade sexual e sobrevivên­cia da espécie

MAIS INFORMAÇÕE­S: FRANS DE WAAL – OUR INNER APE: A LEADING PRIMATOLOG­IST EXPLAINS WHY WE ARE WHO WE ARE. RIVERHEAD BOOS (2006)

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