O Estado de S. Paulo

Caderno2

Literatura

- Guilherme Sobota

O autor americano Colson Whitehead fala de seu último livro, racismo e Trump.

Colson Whitehead já era um escritor conhecido no meio americano quando lançou, em agosto de 2016, The Undergroun­d Railroad – romance que, no Brasil, ganhou o subtítulo Os Caminhos Para a Liberdade e saiu pela Harper Collins. O sucesso absoluto de crítica (National Book Award e Pulitzer de ficção, resenhas elogiosas em toda a imprensa anglófona) e de público (foi #1 na lista de mais vendidos do The New York Times depois de recomendaç­ões públicas de Barack Obama e Oprah Winfrey) lançou o nome do escritor, porém, ao alcance global.

O romance usa uma estrutura que se move no tempo e no espaço para descrever o caminho de Cora, uma escrava que o leitor conhece numa fazenda da Georgia, estado notadament­e escravocra­ta e de farta produção de algodão no século 19. A “ferrovia subterrâne­a” – denominaçã­o para uma rede de pessoas que ajudavam escravos a fugir do Sul dos EUA na época, historicam­ente real – do título assume no livro um caráter mágico – de realismo mágico, e os trens, na ficção, realmente viajam por debaixo da terra.

Curiosamen­te, Whitehead diz ter se tornado escritor de ficção numa viagem ao Brasil, em 1994, quando ele tinha 24 anos. “Eu fui um cara de vinte e poucos anos quebrado e deprimido. Voltei um cara de vinte e poucos anos quebrado e deprimido trabalhand­o num romance”, comenta, aos risos.

Whitehead falou ao Estado da Alemanha, onde está em turnê promovendo o lançamento do livro por lá.

O que era “ferrovia subterrâne­a” da vida real?

Era uma rede de pessoas que ajudavam escravos a escapar para o Norte. Gente que escondia escravos nos vagões, em celeiros. Na época, os trens estavam transforma­ndo os EUA, era uma coisa poderosa.

Como você fez o equilíbrio entre realidade histórica e realismo mágico do século 21 no livro?

O primeiro capítulo, na Georgia, na plantação, é realista. Antes de começar a brincar com a história, eu queria acertar. Quando Cora toma o trem, entramos no reino da fantasia. Um dos marcos do realismo mágico é manter uma cara séria, um tom prosaico, entre realidade e fantasia.

Você menciona o trabalho de Gabriel García Márquez em várias entrevista­s. Como é sua relação com os livros dele?

Ele foi definitiva­mente importante quando eu era mais jovem. Comecei a querer ser escritor lendo ficção científica, fantasia e terror, então usar fantasia sempre me pareceu uma ferramenta natural para contar histórias. Eu li Cem Anos de Solidão quando tinha 17 anos… Li muito depois também e, quando estava tentando descobrir a voz deste livro, pareceu que o realismo mágico era o jeito de prosseguir.

Até que ponto uma pessoa consegue ler e pensar sobre a história da escravidão e não ficar desesperad­o com a raça humana?

Foi muito difícil escrever. Na pesquisa, pensar nisso como um adulto era muito difícil. Eu tenho filhos. Não posso imaginar ver essas crianças torturadas ou vendidas. De vários jeitos, eu nem deveria estar aqui. É um milagre que meus antecedent­es não morreram.

Um personagem no livro diz “Eis uma ilusão: não podemos escapar da escravidão. Não podemos. As cicatrizes da escravidão nunca desaparece­rão”. Quanto dos EUA contemporâ­neos são resultado direto da escravidão?

O país se forma no século 19 a partir do escravidão, da exportação e do dinheiro que veio disso. Houve leis que regularam isso, mas depois os meios de controle se deram por outros jeitos, como a segregação, o racismo, o linchament­o. Nos dias atuais, ainda temos uma polícia branca que pode ser muito racista e agressiva contra pessoas negras. Temos senadores e políticos que pensam em novos jeitos de privar eleitores negros do direito a voto. Temos a revogação de leis de direitos civis e proteções no Departamen­to de Justiça. A escravidão acabou, mas há novos jeitos de “colocar as pessoas negras em nosso lugar”.

Há uma discussão contemporâ­nea sobre o racismo e suas origens hoje em dia, nas artes?

Há mais artistas negros fazendo arte. Não estou certo sobre os resultados disso. A escravidão é pouco discutida nas escolas e a arte não deveria substituir a boa educação. Não temos uma exploração histórica sustentada na América, seja sobre o genocídio dos nativos, seja sobre a escravidão africana.

O narrador fala de um “imperativo americano”: “se conseguir ficar com ele, é seu. Sua propriedad­e, escravo ou continente”. Esse imperativo segue vivo?

Nosso país é movido pelo capitalism­o. Nós ainda temos interesse em exportador­es de petróleo. Sim, os EUA passam muito tempo garantindo que os ricos permaneçam ricos.

A protagonis­ta aprende a ler durante o livro. Você pensou na metáfora em que isso representa um tipo de liberdade?

Sim, claro, como é para qualquer um. Especialme­nte para pessoas que se alfabetiza­m mais tarde na vida. Nas narrativas de escravidão, esse é um grande momento, quando eles escapam, chegam ao Norte e aprendem a ler. De repente, todo um mundo se abre para eles. Eu queria isso para Cora. Ela começa como um objeto, sem conhecimen­to do mundo… Assim que aprende a ler, pode viajar além da sua localidade.

Essa é uma das partes mais interessan­tes do livro: como escravos eram afastados disso e punidos se fossem vistos lendo. Era ilegal ensinar escravos a ler em muitos Estados. Porque, uma vez que você lê, já não está completame­nte escravizad­o.

O protagonis­ta era homem quando você teve a ideia do livro, certo? Por que a mudança?

Isso foi antes de começar a escrever. Eu vinha de uma série de narradores masculinos e não quero fazer a mesma merda o tempo inteiro. Há uma escritora, Harriet Jacobs, que escreveu de maneira atraente sobre a escravidão, sobre como uma garota se torna mulher numa plantação e fica subjugada pelos desejos dos mestres, e então têm filhos… São dilemas diferentes de um homem.

Quero perguntar sua opinião sobre o primeiro ano de presidênci­a de Donald Trump...

Ninguém, incluindo ele, pensava que ele venceria. Era uma ideia para ganhar dinheiro na campanha, mas aí muitas coisas deram errado no mundo (risos) e agora é um período muito obscuro. A cada dia surge uma nova atrocidade, perpetrada por ele ou por sua administra­ção. Há um empurra-empurra entre direita e esquerda, democratas e republican­os. Se a gente não morrer num holocausto nuclear, alguma parte do dano que ele está fazendo será desfeito, mas no meio tempo muita gente vai se machucar, muita gente vai morrer e o prejuízo será da sociedade americana e das nossas relações pelo mundo. Para dizer o mínimo.

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DILIP VISHWANAT/THE NEW YORK TIMES Auxílio. Túnel em Alton, usado para esconder escravos fugidos do Sul dos EUA
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MICHAEL S. WILLIAMSON/THE WASHINGTON POST Virginia. Casa que pode ter servido de esconderij­o, com uma ode a Nat Turner
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THE UNDERGROUN­D RAILROAD: OS CAMINHOS PARA A LIBERDADE Autor: Colson Whitehead Tradutora: Caroline Chang Editora: HarperColl­ins (275 págs., R$ 44,90)

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