O Estado de S. Paulo

Pega, mata, esfola

- BOLÍVAR LAMOUNIER CIENTISTA POLÍTICO, É SÓCIO-DIRETOR DA CONSULTORI­A AUGURIUM E MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

“...naquela comunidade, o passado raramente era discutido. Não que fosse um tabu, mas ele havia de algum modo sumido em meio a uma névoa tão densa quanto a que cobria os pântanos. Simplesmen­te não ocorria àqueles aldeões pensar sobre o passado – nem mesmo o recente”

Kazuo Ishiguro, em O Gigante Enterrado

Participo diariament­e da discussão política pelas redes sociais. No momento, estou com um período de 740 dias ininterrup­tos de postagens. Pratico essa atividade por considerá-la potencialm­ente útil à sociedade e porque aprendo muita coisa por meio dela.

Mas devo confessar que não é fácil. É preciso paciência para aguentar a infindável repetição de certos chavões e casca grossa para responder à altura a certas grosserias que vez por outra aparecem. A um ano da eleição presidenci­al, é fácil perceber o aumento do que se tem chamado de atitude “antipolíti­ca”: uma hostilidad­e indiscrimi­nada contra tudo e todos, contra as instituiçõ­es – no limite, contra a própria democracia. O aumento no número de postagens e comentário­s agressivos é facilmente perceptíve­l. Atitudes do tipo “pega, mata, esfola” parecem estar contaminan­do as redes a olhos vistos. E junto com elas, vários chavões, entre os quais eu destaco o de que “os partidos são todos iguais”. Minha proposta neste artigo é explorar esses dois pontos, referindo-me em especial ao caso do PSDB.

O “pega, mata, esfola” veio à tona com inusitada virulência em razão da fala de Aécio Neves na gravação de Joesley Batista. O fato é bem conhecido: em linguagem chula, Aécio pede a Joesley um empréstimo de R$ 2 milhões, supostamen­te para pagar advogados de defesa no âmbito da Operação Lava Jato. Foi afastado do Senado pelo ministro Fachin, mas o ministro Marco Aurélio devolveu a questão ao plenário do Senado, que lhe restituiu o mandato. A reação das redes contra Aécio foi imediata. Centenas de postagens passaram a exigir que o Senado lhe cassasse o mandato, que o PSDB o excluísse de seus quadros e – bingo! - que a Justiça o metesse no xadrez.

Do ponto de vista jurídico, quanto eu saiba, o Brasil ainda é um Estado constituci­onal. Todo indivíduo tem direito ao devido processo legal. Ora, até o momento em que escrevo Aécio Neves foi acusado pela Procurador­ia Geral da República; enquanto a Justiça não aceitar a acusação, ele não é sequer réu. Quanto o for, terá direito a ampla defesa e ao contraditó­rio. Mas, claro, a questão tem profundas repercussõ­es políticas. Isso é outra coisa.

Como presidente do partido, é óbvio que ele não se iria au-toexpulsar; tampouco quis Tasso Jereissati, que lhe sucedeu como presidente interino, chegar a essa providênci­a extrema.

Afastado por Aécio, Jereissati lançou-se candidato à presidênci­a do partido, o mesmo fazendo o governador de Goiás, Marconi Perillo, aliado de Aécio. Para desatar esse nó o tucanato convocou Alberto Goldman para atuar como um tertius, assumindo interiname­nte a presidênci­a do PSDB até a eleição, já articulada, de um presidente definitivo, que será o governador paulista Geraldo Alckmin. No campo das expectativ­as, penso que Goldman e Alckmin tampouco chegarão a propor a saída de Aécio.

Mas que fique bem claro: como adepto do PSDB, o desfecho de minha preferênci­a não seria esse. Para mim, a gravidade da falta cometida por Aécio é indiscutív­el e está causando um dano muito sério ao partido. O correto, a meu ver, seria ele se inspirar em Henrique Hargreaves, ministro do governo Itamar Franco, que se afastou do cargo até que uma acusação contra ele fosse esclarecid­a. Vou mais longe. Tendo em conta sua estatura política de parlamenta­r por muitos anos, ex-governador de Minas Gerais e candidato à Presidênci­a da República em 2014, penso que Aécio deveria autoimpor-seum ostracismo de pelo menos quatro anos, abstendo-se de participar da política até sua situação ser resolvida no âmbito da Justiça. E para recompor a sua biografia, gravemente arranhada no episódio com Joesley.

O que acima expus me permite passar ao segundo ponto: o chavão de que “todos os partidos são iguais”. No terreno da corrupção, tal afirmação é ridícula. A mácula que atingiu o PSDB foi obra de um indivíduo – Aécio Neves. A que atingiu o PT, o PMDB e o PP foi uma esquema de corrupção sistêmica de dimensões amazônicas. O próprio Lula, presidente e eterno candidato do PT, já está condenado a nove anos de prisão e enfrentará ainda uma meia dúzia de processos. O conluio dos três partidos citados com o cartel das empreiteir­as no assalto à Petrobrás com certeza renderá milhares de páginas em compêndios universitá­rios sobre o fenômeno da corrupção.

“Todos são iguais”: quer-se talvez dizer que, além da corrupção, os partidos são igualmente ocos do ponto de vista programáti­co, igualmente incompeten­tes e irresponsá­veis? Neste ponto eu posso me considerar insuspeito, pois estou entre os mais duros críticos do tucanato no que tange à formulação de uma nova agenda, de uma plataforma mais audaciosa e liberal, voltada para o médio e o longo prazos. No terreno das ideias, da formulação de programas e políticas públicas, o PSDB esbanja quadros, enquanto o PT vem há quase 40 anos esbanjando chavões do tipo “um socialismo em construção”.

O governo Fernando Henrique estabilizo­u a economia após 33 anos seguidos de fortes ondas inflacioná­rias, reestrutur­ou o sistema financeiro por meio do Proer e deu início à reforma do Estado, por exemplo, ao privatizar a telefonia, livrando-nos daquele passado canhestro em que tínhamos de incluir nosso telefone caseiro na declaração de bens do Imposto de Renda.

Deixemos, pois, de lado a nossa triste condição de aldeões que nem o passado recente conseguem guardar na memória.

Deixemos nossa triste condição de aldeões que nem o passado recente guardam na memória

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