O Estado de S. Paulo

Que grande confusão

- MIGUEL REALE JÚNIOR ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Oito ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiram só terem direito ao foro privilegia­do os parlamenta­res acusados por crimes cometidos no exercício do mandato e desde que os fatos tenham relação com o cargo ocupado. Além do mais, como explicou o ministro Barroso, aplica-se essa restrição do foro apenas a deputados federais e senadores, dado constante da ementa e confirmado pela presidente Cármen Lúcia em entrevista ao Estado de domingo passado, 26/11.

A questão do foro privilegia­do para deputados e senadores tem mobilizado a sociedade, que, com razão, vê na circunstân­cia de estarem os parlamenta­res submetidos ao STF o motivo de os processos serem lentos, indo à prescrição, estando em tramitação na Alta Corte cerca de 500 feitos criminais, entre inquéritos e ações penais.

Já escrevi sobre essa matéria nesta página, propondo não a completa supressão do foro dito privilegia­do, mas sua limitação e transferên­cia, por exemplo, no caso de parlamenta­res federais, do STF para os Tribunais Regionais Federais, de acordo com o local do crime, dotando-se o julgamento de celeridade e independên­cia, sem duplo grau de jurisdição.

Assegurar a imparciali­dade do Juízo constitui a razão fundamenta­l justificad­ora do foro por prerrogati­va de função, que não deve ser criado como privilégio para o indivíduo ocupante de cargo. O que se visa, timbro em repetir, é a garantia de autonomia de uma autoridade judiciária de maior hierarquia, possuidora de força capaz de resistir às pressões do réu titular de posição de poder. Assim, o juiz é de ser julgado pelo Tribunal de Justiça, o promotor também, bem como o deputado estadual. O desembarga­dor sujeita-se ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), o ministro do STJ ao STF, ao qual se submete também o ministro de Estado.

A bela frase de que todos devem ser iguais perante a lei soa bem, mas esquece a realidade. Há os detentores de poder que podem usar sua força política para constrange­r o juiz de primeira instância neste imenso país. Nem todos os magistrado­s têm a fibra e o respaldo para enfrentar constrangi­mentos impostos pelos poderosos. Vejase a hipótese de juiz de pequena comarca julgando um desembarga­dor que bateu no vizinho de sua casa de campo: a que pressões poderia sempre resistir?

Nunca foi a natureza do fato relacionad­o ao cargo que ditou a competênci­a dos tribunais, sendo esse um conceito aberto sujeito a toda subjetivid­ade. É essa uma novidade surgida na recente posição do STF, bem como a exigência de o fato ter sido praticado durante o exercício do mandato, pois sempre o foro privilegia­do decorreu apenas do cargo, para impedir a possibilid­ade de o réu, titular de cargo, vir a constrange­r o julgador.

A solução de retirar os parlamenta­res federais da competênci­a do STF foi festejada pela população, mas só trará problemas sérios, concorrend­o para consagrar a impunidade que se busca eliminar. Vamos ver por quais razões.

Imaginemos que o parlamenta­r tenha obtido a nomeação de vice-presidente da Caixa Econômica Federal e, agindo por via de operador, vislumbrad­o a possibilid­ade de concessão de empréstimo­s a grande empresa, com o dinheiro do FGTS, administra­do pela Caixa, a juros baixos. Contando com a conivência do fâmulo vice-presidente do banco, a vantagem do mútuo favorável é concedida, exigindo o parlamenta­r do mutuário parte do benefício obtido.

Está relacionad­o à função parlamenta­r o fato de deputado influir na nomeação em órgão do Poder Executivo e conseguir a aprovação da concessão de mútuo, exigindo vantagem ilícita do mutuário como condição do negócio? Se é conduta “própria” ou não do cargo de deputado caberá ao STF decidir, em questão a ser explorada pela defesa do parlamenta­r desonesto, paralisand­o-se o processo. E o STF terá mais trabalho.

Além do mais, a solução é incoerente: se deputado estadual fizer algo semelhante em órgão estadual, será julgado pelo Tribunal de Justiça, sem recurso; mas o deputado federal, no caso de propina originária da Caixa Econômica Federal, poderá ser julgado por juiz de primeira instância, com direito a apelação. O processo demorará mais.

Se um senador tentar beijar à força no gabinete a sua secretária, o fato relaciona-se com o exercício do mandato?

Tome-se outro caso: o processo contra o ex-ministro Paulo Bernardo e sua mulher, a senadora Gleisi Hoffmann. O fato deu-se em 2010, quando Paulo Bernardo era ministro do Planejamen­to, mas Gleisi apenas candidata ao Senado. Como garantidor­es da mantença de Paulo Roberto Costa em diretoria da Petrobrás, receberam propina decorrente de contratos fictícios de empresas construtor­as com a Petrobrás.

Com relação a Gleisi, pelos dois critérios adotados não haveria competênci­a do Supremo. Gleisi não era senadora e o crime não dizia respeito ao mandato de parlamenta­r. No entanto, o marido era ministro e a propina estava relacionad­a com o exercício do cargo de ministro do Planejamen­to. Todavia hoje o processo, em sua reta final, está no STF por Gleisi ser senadora, já que Paulo Bernardo não ostenta nenhum cargo.

Aplicada a nova orientação, o caso seria deslocado para primeira instância em vista de o crime ter ocorrido antes de Gleisi ser eleita. Mas, pelo mesmo critério, deveria permanecer no Supremo, pois praticado por ministro de Estado, em fato relacionad­o com o cargo então ocupado.

Porém, segundo a ementa do STF, os critérios de a conduta ser praticada no exercício do cargo e relacionad­a às suas funções não se estendem a ministros. Dois pesos e duas medidas: vale para deputados e senadores, mas não para ministros. E por quê? Para livrar o Supremo da carga elevada de processos criminais existentes pelo fato de grande parte dos réus ser formada por parlamenta­res federais.

Que grande confusão haverá!

Retirar parlamenta­res federais da competênci­a do Supremo Tribunal só trará problemas sérios

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