Sonho austral
Levantar no meio da noite e se deparar com orcas faz parte da realidade quando se está em um cruzeiro turístico pelo extremo sul do planeta. Ali, quem manda é a natureza
Quase onze da noite e, atipicamente, eu já dormia. O princípio de um sono bom, quentinho e pesado na cabine 342 foi interrompido pelo aviso sonoro. Naquele momento, o navio Hebridean Sky cruzava o Estreito de Gerlache, na Península Antártica. “A essa hora só pode ser notícia ruim”, pensei. Sem abrir os olhos nem me mexer, esperei a convocação para uma evacuação às pressas. Precedida por um pedido de desculpas do chefe da expedição, Brandon Harvey, a mensagem veio clara pelo alto-falante: “senhoras e senhores, temos orcas ao redor do navio. Muitas delas”. Seria um sonho?
Por breves segundos fiquei dividido entre o calor do edredom, o frio obsceno lá fora e o risco de perder tempo me vestindo com várias camadas e não ver nada. Afinal, bichos vêm e vão. Bocejos. Por fim, virei um boneco recheado de casacos, luvas e preguiça. Segui no corredor, subi a escada, entrei no deque 4. Abri a porta. Logo ali, a primeira e enorme nadadeira dorsal preta rasgando as águas, em meio a blocos de gelo de todos os tamanhos. Êxtase não define.
Este foi apenas um dos incontáveis momentos dignos de lembrança eterna durante as quase três semanas de uma jornada “diferentona”, rumo ao Continente Antártico. Mas há cada vez mais viajantes dispostos a investir alto para experimentar sem intermediários um dos destinos mais gelados, inóspitos e únicos da Terra.
De acordo com a Associação Internacional dos Operadores de Turismo Antárticos (Iaato, na sigla em inglês), mais de 44 mil cruzeiristas, a bordo de 53 embarcações, visitaram o continente na temporada passada contra 38 mil na anterior (2015-2016). Um contingente considerável para um pedaço de planeta ocupado por 98% de gelo, e onde até duas décadas atrás pisavam apenas cientistas e velejadores aventureiros.
Roteiro gelado. Além de um desejo antigo de ir à Antártida, o roteiro que tive o privilégio de vivenciar engloba o crème de la crème da natureza no Atlântico Sul. Com partida de Puerto Madryn, a cidadebase para explorar a Península Valdés, o navio seguiu por dois dias até as controversas (e surpreendentes) Ilhas Malvinas. Ou Falklands, como preferem os locais.
Dali, mais duas noites rumo à deslumbrante Ilha Geórgia do Sul, palco de uma das mais célebres histórias de sobrevivência da navegação, protagonizada pelo capitão Ernest Shackleton (1874-1922). Quatro dias de muitos desembarques em meio às maiores colônias de pinguins-rei e elefantes-marinhos do planeta, sob picos nevados enormes e piramidais. Quem já leu livros do navegador Amyr Klink ou qualquer literatura sobre viagens oceânicas na certa abriu um sorriso agora (se você não leu, é uma boa dica de leitura para levar a bordo).
Duas noites em mar aberto nos separavam do destino mais desejado. Não sei bem dizer se quatro dias intensos na Antártida deram conta de traduzir em sensações um lugar cuja alma nenhuma foto ou vídeo consegue capturar. Nem a fofura de uma foca-de-Weddell, a perseverança de um pinguim-gentoo ou a despreocupação de uma baleia jubarte.
Uma semana após voltar para casa, ainda tenho a sensação de que poderia passar uma eternidade por lá. Mesmo sem essa opção no catálogo, pacotes de muitas operadoras se dedicam exclusivamente aos infinitos pontos de ancoragem diante de geleiras monumentais, “piscinas” de gelo e montanhas como o Monte Vinson, o maior do continente, com 4.892 metros de altitude. Nenhuma foto consegue reproduzir o que é o lugar ao vivo.
Depois de 20 dias, atracamos em Ushuaia, no extremo sul argentino, às margens do Canal de Beagle, de onde partem e chegam a maior parte dos cruzeiros com destino à Antártida. Diante das luzes da cidade, a cabeça voltava algumas milhas náuticas no tempo. Como se a memória quisesse confirmar o que os olhos não cansavam de constatar: o paraíso é azul. E gelado.