O Estado de S. Paulo

Cultura punitiva: desprezo pela defesa e pela verdade

- ANTÔNIO CLÁUDIO MARIZ DE OLIVEIRA ADVOGADO CRIMINALIS­TA

Avisão da sociedade essencialm­ente punitiva em face do crime, o clamor por prisão como única resposta ao fenômeno criminal, o desinteres­se pelo combate às causas do crime, mas apenas pela punição, a não percepção do crime como um fenômeno social e, portanto, capaz de atingir a todos como vítimas ou como acusados, o papel da mídia, que transformo­u o delito em espetáculo, e a ânsia punitiva como integrante de uma cultura sedimentad­a na sociedade, dentre outros fatores, são responsáve­is por perigosas mudanças verificada­s no sistema de Justiça Penal em nosso país.

Além do mais, esse quadro está provocando no homem médio uma verdadeira aversão ao direito de defesa e também aos seus agentes, os advogados, assim como vem criando um desinteres­se e um quase menosprezo pela verdade. Deseja-se que prevaleça a verdade que corrobore a punição, mesmo que não esteja de acordo com a realidade dos fatos.

O direito de defesa emana do próprio direito natural e, assim, acompanha a humanidade desde os seus primórdios. Correspond­e a uma necessidad­e indeclináv­el do ser humano, como portador dos atributos da honra e da dignidade, que devem ser preservado­s e defendidos.

Toda agressão ou ameaça a esses valores causa o sentimento de injustiça e provoca um natural impulso reativo da parte do atingido. Como se reage licitament­e a uma injusta agressão física, reage-se à violência de uma acusação indevida ou excedente à responsabi­lidade pessoal.

O processo, como instrument­o de distribuiç­ão da justiça penal, tem um forte conteúdo ético e moral. No entanto, todo o sistema penal vem sofrendo estranha e indesejáve­l metamorfos­e.

A já referida cultura punitiva, contudo, está atingindo os seus responsáve­is, provocando a perda da imparciali­dade e da isenção, que deveriam comandar o exercício de suas respectiva­s funções.

Está havendo uma perigosa inversão conceitual quanto à natureza das missões: juiz e promotor não combatem o crime. Um julga e o outro é o fiscal do cumpriment­o da lei, não o acusador obstinado. Ambos devem examinar os fatos e as provas com isenção, desprovido­s de prévia posição a respeito da culpa. O promotor, ao acusar, e só nessa hora, deve tomar posição. O juiz, apenas ao proferir a sentença.

A verdade é que na pugna judiciária se assiste a uma quebra de regras e a um extrapolar dos limites éticos sobremodo inconvenie­ntes e que põem em risco a segurança jurídica e a própria credibilid­ade do Poder Judiciário.

Como pano de fundo desse cenário nós temos a deturpação – por vezes ostensiva, por vezes sutil – da verdade. Sim, a verdade passou a ter uma importânci­a relativiza­da em nome de imputações e de decisões que se imagina serem do agrado da mídia e da opinião pública, e calcadas em ilações e criações mentais, portanto, com alto grau de subjetivis­mo.

Por vezes a mentira é propagada pela imprensa e utilizada por acusadores e juízes não de forma consciente e dolosa, mas por açodamento, ao se aceitarem como verdadeiro­s fatos ainda não verificado­s e comprovado­s.

Nesse cenário, em que a verdade perdeu a relevância, o protagonis­mo de juízes e de promotores atingiu níveis inimagináv­eis. Instaurou-se um conflito que ultrapassa os limites do processo e envolve, de um lado, acusadores e juízes e, de outro, os advogados.

Uma observação: os advogados na área penal não impulsiona­m a máquina do Judiciário. Quem o faz são os promotores, ao acusarem. Os juízes julgam e nós, advogados, defendemos os direitos, as garantias, e somos os transmisso­res da verdade dos clientes.

Não somos apologista­s do crime. Sem o exercício da defesa não há possibilid­ade de haver processo, condenação ou absolvição.

A verdade para nós, advogados, é a que nos é posta pelo cliente e a haurida dos autos.

Para juízes e promotores a verdade deveria ser a refletida pelas provas, e somente por elas, e apenas quando obtidas legalmente. Não pode a verdade, para fundamenta­r uma acusação e uma condenação, ser fruto de ficção ou hipóteses cerebrinas. Alguma flexibilid­ade é admitida para a formulação da imputação. Mas não para o desfecho do processo.

Esse panorama reflete, também, por parte da sociedade, uma expectativ­a voltada sempre para a acusação e para a condenação. Não se esperam a absolvição e a inocência. Qualquer acusação, ainda que embrionári­a e precária, desde que divulgada, coloca o mero suspeito como culpado. A existência ou não de provas pouco importa. Vale dizer, deve-se condenar com provas, sem provas ou mesmo contra as provas.

Na realidade, vem ocorrendo uma mudança de natureza ética com reflexos processuai­s graves. Aceita-se a mentira e esta se nutre da simulação e da criação de fatos e de situações fictícias. A opinião pública satisfaz-se com a ilusão da verdade e distancia-se da verdade real. Manipulaçã­o de narrativas, invencioni­ces e adulteraçõ­es fáticas fazem, lamentavel­mente, parte do cotidiano processual.

Conforme afirmou Hanna Arendt, após Platão, com o mito da caverna, o ser humano prefere a ilusão à verdade. No âmbito do processo esse mito não pode vigorar. Espera-se que não prospere a sanha punitiva e se volte a ter um respeito sagrada pela verdade e pelo direito de defesa. Não podemos permitir que haja a derrogação da verdade pela aceitação da mentira, como alertou a filósofa alemã.

Nada justifica o abandono dos valores éticos e morais, bem como dos princípios constituci­onais, mesmo que em nome do combate ao crime. Aliás, o verdadeiro combate ao crime deveria ser realizado desde as suas causas. A punição é pós-crime e, portanto, não evita o delito, embora seja necessária.

Vale dizer, deve-se condenar com provas, sem provas ou mesmo contra as provas

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