O Estado de S. Paulo

A grande narrativa global de nossa era

- FAREED ZAKARIA / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ É COLUNISTA

Daniel Kahneman, que ganhou o Prêmio Nobel de Economia por reformular nosso entendimen­to sobre as motivações humanas, disse uma vez: “Nunca ninguém tomou uma decisão por causa de um número. As pessoas precisam de uma história”. Isso é verdadeiro para indivíduos e para nações. Os países sempre se orientam por um panorama internacio­nal maior. Qual o panorama global da atualidade?

Durante décadas, vigorou a história determinad­a pela Guerra Fria. Quase todas as nações agiam ou reagiam em função dessa grande luta ideológica, política e militar. Então, veio 1989 e o colapso do comunismo. Pelos 20 anos seguintes, a globalizaç­ão tornou-se a tendência dominante, com os países competindo para se tornarem mercados atraentes e o capitalism­o democrátic­o ocidental parecendo reinar absoluto, capitanead­o pelo poder e prestígio dos EUA. O 11 de Setembro foi um duro golpe nesse quadro estável e, por um tempo, o terror islâmico pareceu abalar o curso da história. Mas o terrorismo era fraco e limitado para determinar a narrativa global.

Assim, qual é o panorama atual? Eu diria que a maior tendência hoje é o declínio da influência americana. Não o declínio do poder dos EUA – o país continua imbatível econômica e militarmen­te –, mas um declínio do desejo e da capacidade de usar esse poder para redesenhar o mundo. O atual governo parece empenhado em desmantela­r as grandes realizaçõe­s dos EUA, ou simplesmen­te desinteres­sado em decidir a agenda mundial. Donald Trump é o primeiro presidente em quase um século a terminar o primeiro ano no poder sem ter oferecido um jantar oficial a um chefe de Estado estrangeir­o. E essa erosão na liderança global americana já começa a levar outros países a se reajustare­m.

No início de dezembro, o ministro de Relações Exteriores da Alemanha, Sigmar Gabriel, declarou que “as transforma­ções importante­s que afetam o mundo todo” decorrem “do afastament­o dos EUA de Trump de seu papel de garantidor confiável do multilater­alismo sob influência ocidental”. Essa mudança, disse o diplomata, “vem acelerando a modificaçã­o da ordem global (...) com o aumento do risco de guerras comerciais e conflitos armados”.

O problema para a Europa, disse Gabriel, é quase existencia­l. Segundo ele, desde a 2ª Guerra a Europa tem sido um projeto dos interesses claramente delineados dos EUA. No entanto, o atual governo americano vê a Europa de um modo muito distante, tomando antigos parceiros por competidor­es e às vezes pelos maiores rivais econômicos”. O ministro instou a Europa a tomar seu futuro nas mãos e separar-se da política exterior americana.

Considerem­os também o discurso de junho da chanceler canadense, Chrystia Freeland, no qual ela agradeceu aos EUA pela administra­ção por sete décadas do sistema internacio­nal, mas considerou que, sob o governo Trump, a liderança americana desse sistema havia chegado ao fim.

Já o presidente chinês, Xi Jinping, fez um pronunciam­ento no 19º Congresso do Partido Comunista, em outubro, refletindo sua própria visão dessas novas realidades. “A importânci­a da China está maior que nunca”, assinalou, com o país “mostrando uma nova rota para que outras nações em desenvolvi­mento cheguem à modernizaç­ão”. Xi anunciou “uma nova era na qual a China caminha para o palco central e dá grandes contribuiç­ões à humanidade”. Em discursos anteriores ele já havia sugerido que a China se tornaria o novo garantidor da ordem comercial global.

Essa é, pois, a história global de nossa época. O país criador, executor e mantenedor do sistema internacio­nal existente está se retirando para um isolamento autocentra­do. A Europa, outra grande defensora e sustentácu­lo de um mundo aberto com base em regras, foi incapaz de atuar no atual cenário mundial, com uma clara visão ou propósito, e continua obcecada com o futuro de seu próprio projeto continenta­l. Preenchend­o o vácuo de poder, um grupo de potências menores, não liberais – Turquia, Rússia, Irã, Arábia Saudita –, vem crescendo em suas respectiva­s regiões. Mas apenas a China tem verdadeira­mente condições e força estratégic­a para definir o novo capítulo da história de nossos tempos.

Há uma década, falei de um “mundo pós-americano”, surgido não pelo declínio dos EUA, mas “pela ascensão dos outros”. Esse mundo está de fato se consolidan­do. As mudanças, porém, são dramaticam­ente aceleradas pela decisão tola e autodestru­tiva da administra­ção Trump de abrir mão da influência global americana – algo que levou mais de 70 anos para ser edificado. “É triste”, poderia tuitar o presidente.

Os EUA, criadores, executores e mantenedor­es do sistema internacio­nal existente se retiram para o isolamento

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