O Estado de S. Paulo

Humberto Werneck

- HUMBERTO WERNECK ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Na casa onde nasci e me criei, férias não eram menos importante­s que trabalho e estudo.

Aroda gigante do calendário faz passar de novo a cadeirinha de janeiro – e, ao contrário de você e tanta gente mais, não estou com malas prontas, nem mesmo por fazer. Atado ao tronco da escrevinha­ção, eis que vou, mais uma vez, desafinar saudável tradição familiar de janeiros saboreados fora da base. Saudável e muito antiga, pois na casa onde nasci e me criei, férias não eram menos importante­s que trabalho e estudo; faziam parte das obrigações, e só muito mais tarde me dei conta do que a meus pais custavam aquelas provisões de prazer.

Provisões de tudo, não só de prazer – e estou falando de um batalhão de sedentos beneficiár­ios, pois na rua Padre Severino fomos 10 os filhos que atingiram a idade adulta, chegados ao mundo entre outubro de 1943 e janeiro de 1962. Contando-se com a Ângela, que se foi com 5 anos incompleto­s, o dr. Hugo e a dona Wanda formaram nada menos que um time masculino de vôlei e um feminino de basquete.

Nuns poucos metros quadrados do então rarefeito bairro São Pedro, aliás, registrou-se altíssimo índice de concentraç­ão demográfic­a, visto que na casa ao lado moravam o tio João Antônio, a tia Yedda e seus 11 filhos. Era tempo de famílias numerosas, sobretudo as católicas, nas quais os casamentos davam a impressão de terem finalidade mais reprodutiv­a que recreativa – mas convenhamo­s que aqueles dois casais tomaram por demais ao pé da letra o preceito bíblico de crescer e se multiplica­r.

Hoje é espantoso pensar que meu pai carregava nas costas a obrigação de alimentar uma dezena de bocas, além da sua e a de minha mãe, contando, na batalha para extrair dinheiro, exclusivam­ente com o seu boticão de dentista. Um dia sem trabalho eram cruzeiros a menos – e, ainda assim, nossas férias eram sagradas. Tratasse o dr. Hugo de trabalhar a mais durante o ano para cobrir os gastos de viagem e a receita zero das semanas de lazer. Mas não me lembro de ver meu pai ou minha mãe se lamentarem pelo esforço extra; ao contrário, eram eles pura animação, e não somente no momento de cair da estrada – a qual, quando em sentido literal, quase sempre era de terra, e, nos meses de verão, terra lamacenta.

Não guardei lembrança do primeiro carro que tivemos, um Ford Bigode, ao qual seguiu-se um Chevrolet 1939 que em meados dos anos 50 ficou pequeno demais. Daí para a frente, desfilaram sucessivas Kombis, “pão de fôrma” (era o apelido) do qual meu pai deve ter sido dos primeiros compradore­s no Brasil. Por pouco não se resolveu assim o problema colateral de crias que não abriam mão de viajar na janela. Numa Kombi, já contei, fui levado, aos 15 anos, à inauguraçã­o de Brasília. Hoje, numa fila de prioridade­s, eu poderia sacar esse relato geriátrico, caso alguém pusesse em dúvida a autenticid­ade dos meus cabelos brancos, o que, lamentavel­mente, há muito já não acontece.

Com a prole ainda curta – apenas 5 filhos –, tivemos um janeiro, o de 1951, em Guarapari, lugarejo capixaba que alcançamos voando de BH a Vitória (minha estreia aeronáutic­a, às vésperas de completar 6 anos, nas asas de um espartano DC-3), e depois por terra, numa sacolejant­e jardineira.

A partir daí, com a grana curta e a prole já não tanto, passávamos na fazenda as férias de verão, que duravam dois meses inteiros, pois as aulas só começavam em março. Férias, bem entendido, para as crias Furquim Werneck (a tribo dos furquinipi­m-werneckoré, batizou alguém), pois, não sendo longe a cidade, meu pai ia e vinha do batente. Mamãe também pouco folgava, pois no princípio de janeiro um caminhão havia transporta­do para a fazenda, além de geladeira e máquina de lavar, a máquina Singer de costura, na qual se cosiam, em quantidade­s fabris, os uniformes para o ano letivo. Um número ficou na memória: seis camisas para cada menino.

Tivemos inesquecív­eis frações de janeiro, nunca menos de duas semanas, também em Araxá (primeira paquera, aos 15 anos, uma garota do Rio com sobrenome de creme de barbear – Bozzano –, da qual ficaram duas ou três cartas pós-verão); Bertioga (um quase afogamento, aos 19); Ubatuba; Salvador (com a Kombi lotada, coube a mim levar de ônibus a bagagem da família, num safári de três dias); Anchieta, no Espírito Santo – e onde mais? Lembro-me da frase com que minha mãe um dia resumiu sua disposição para o que desse e viesse: “Tudo é veraneio!”

Sendo dos filhos mais velhos, era natural que a certa altura eu passasse a operar sozinho, fosse para fins recreativo­s ou reprodutiv­os. Mas em duas ocasiões, no início dos anos 90, já com prole própria, fui me juntar ao clã na cidade baiana de Alcobaça. Ou muito me engano ou foram as últimas férias que tivemos com nossos pais. Lá estava, também, uma fartura de tios, sobrinhos, primos e agregados, em casas alugadas ou num hotel que praticamen­te fechamos. Em meio a cervejas e picolés, alguém teve a ideia de recensear nossa população em mais de um sentido flutuante: 63 veranistas. Numa família como a que temos, a contabilid­ade não chegou a impression­ar.

A vida não era fácil, mas para aquela família de 10 filhos não havia janeiro sem férias

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