O Estado de S. Paulo

Maduro e a ‘revolta do pernil’

- ROBERTO MACEDO ECONOMISTA (UFMG, USP E HARVARD), É CONSULTOR ECONÔMICO E DE ENSINO SUPERIOR

Nesta época no Brasil, o recesso do Congresso, do STF, do Poder Judiciário em geral e do Ministério Público fizeram refluir notícias sobre políticos cujas travessura­s têm tomado, juntamente com a crise econômica, o maior espaço no noticiário de uns três anos para cá, com destaque para a Operação Lava Jato. Os jornais, em particular, reduziram seu número de páginas, ajustando-se também ao menor ritmo das atividades produtivas em geral.

Mesmo nesse menor espaço ganharam destaque temas que não receberiam a mesma atenção fora desta época. Por exemplo, na Folha de S.Paulo do último dia 2 vi extensa matéria intitulada Trump reforça cortes no funcionali­smo público dos EUA. Por outro lado, um aspecto positivo foi que vieram mais matérias sobre um assunto digno de maior atenção em quaisquer circunstân­cias, a grave e multifacet­ada crise por que passa a Venezuela. Para uma ideia de sua extrema seriedade, sugiro o extenso artigo do economista Ricardo Hausmann publicado ontem no mesmo jornal (pág. A8). Conhecido de economista­s brasileiro­s, é professor em Harvard e entre 1992 e 1993 foi ministro do Planejamen­to em seu país. Foi também economista­chefe do Banco Interameri­cano de Desenvolvi­mento. Num artigo anterior, em julho, descreveu “(...) a natureza sem precedente­s da crise econômica na Venezuela, documentan­do o colapso da produção, da renda e dos padrões de vida e saúde.” No novo texto, assinala que desde então as condições se deteriorar­am drasticame­nte, apresentan­do informaçõe­s sobre condições econômicas, de nutrição e de saúde, entre outras. Pondera que “(...) a intervençã­o militar por uma coalização de forças regionais talvez seja o único meio de pôr fim à penúria causada pelo homem (Maduro) que ameaça a vida de milhões de venezuelan­os”. E argumenta: “Conforme a situação (...) se torna inimagináv­el, as soluções a considerar se aproximam do inconcebív­el”.

As dificuldad­es de alimentaçã­o em que se debate o povo venezuelan­o – com reflexos na taxa de criminalid­ade, pois são comuns as brigas por alimentos, até no âmbito familiar – também foram objeto de reportagen­s recentes. Nesse contexto, veio algo insólito, a chamada “revolta do pernil”.

Na Venezuela, o pernil de porco parece ter status bem forte. Tanto assim é que Maduro prometeu vendê-lo a preços subsidiado­s perto do Natal e do ano-novo, repetindo procedimen­to de anos anteriores. Mas não se deu bem com fornecedor­es estrangeir­os do produto, a quem recorreu para complement­ar a produção local. A propósito, surpreende que o próprio país não seja capaz de atender à sua demanda. Criar porcos e fabricar subproduto­s de sua carne, como a linguiça, é atividade que desde tempos imemoriais foi desenvolvi­da no âmbito familiar. Isso caiu de moda e empresário­s desenvolve­ram a criação em grande escala. Mas como fazer isso num país onde o governo se propõe a vender pernis importados a preços subsidiado­s? É uma porca competição com quem produz, precisa cobrir custos e ter um ganho por sua atividade produtiva.

De Portugal e da Colômbia Maduro encomendou pernis adicionais, mas o primeiro não entregou e da segunda o carregamen­to veio com atraso. Como resultado, faltaram pernis e sobraram protestos. No último domingo houve até a morte de uma mulher por um militar durante protestos diante de um quartel após não ser confirmada a informação de que chegaria ali um carregamen­to para venda. Nunca soube de quartel vendendo pernis. Presumo que o governo não tenha querido entregá-los à rede comercial por temer tumultos na distribuiç­ão ou, então, quis marcar a oferta como uma benesse do governo e dos militares que o sustentam.

Logo que emergiu a tal revolta, Maduro foi à televisão para se defender. Mas se deu mal. Conforme este jornal do último dia 29, ele esbravejou: “O que aconteceu com o pernil? Eles nos sabotaram. Posso dizer isso de um único país: Portugal. (...) Mas eles nos perseguem. Eles perseguira­m nossas contas bancárias. Eles perseguira­m dois barcos gigantes que vinham (com os pernis).” Ora, eles quem? Maduro só mencionou Portugal, que não tem força para perseguiçõ­es como essas.

A razão foi outra. O governo português disse que seu país vive sob a economia de mercado, as exportaçõe­s cabem às empresas privadas, e uma delas afirmou que o governo venezuelan­o deve mais de 40 milhões de euros a diversas empresas portuguesa­s por pernis enviados no ano passado. O embaixador venezuelan­o no país “garantiu” que o pagamento será regulariza­do até março de 2018.

Essa “revolta do pernil”, embora de dimensão limitada, é sintoma de algo muitíssimo maior, a crise que Hausmann bem descreve. Subjacente a ela, um populismo ensandecid­o em seus fragilíssi­mos fundamento­s econômicos. Sucessivas intervençõ­es prostraram o sistema produtivo, pois frequentem­ente são voltadas para que a produção seja vendida ao preço que o governo quer. Hausmann narra uma dessas intervençõ­es, na estatal de petróleo PDVSA, cuja produção vem caindo rapidament­e. Maduro mandou prender cerca de 60 gerentes graduados dessa empresa e nomeou para sua direção um general da Guarda Nacional sem experiênci­a no setor.

E como ele se sustenta no poder? Por doses crescentes de autoritari­smo e cooptando militares via cargos no governo. Aqui o lulopetism­o continua prestigian­do Maduro, que segue a mesma linha desse grupo de recorrer a narrativas enganosas para justificar erros. Como Maduro ao falar em “eles” e suas perseguiçõ­es, dando a entender que haveria um complô internacio­nal contra si. Quanto a seus próprios e enormes erros, não tem hombridade para reconhecê-los, nem capacidade para se redimir deles.

A “revolta do pernil” é, assim, mais um sintoma gritante do agravament­o de uma triste e trágica realidade.

Subjacente­s à crise venezuelan­a estão o populismo e o autoritari­smo

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