Maduro e a ‘revolta do pernil’
Nesta época no Brasil, o recesso do Congresso, do STF, do Poder Judiciário em geral e do Ministério Público fizeram refluir notícias sobre políticos cujas travessuras têm tomado, juntamente com a crise econômica, o maior espaço no noticiário de uns três anos para cá, com destaque para a Operação Lava Jato. Os jornais, em particular, reduziram seu número de páginas, ajustando-se também ao menor ritmo das atividades produtivas em geral.
Mesmo nesse menor espaço ganharam destaque temas que não receberiam a mesma atenção fora desta época. Por exemplo, na Folha de S.Paulo do último dia 2 vi extensa matéria intitulada Trump reforça cortes no funcionalismo público dos EUA. Por outro lado, um aspecto positivo foi que vieram mais matérias sobre um assunto digno de maior atenção em quaisquer circunstâncias, a grave e multifacetada crise por que passa a Venezuela. Para uma ideia de sua extrema seriedade, sugiro o extenso artigo do economista Ricardo Hausmann publicado ontem no mesmo jornal (pág. A8). Conhecido de economistas brasileiros, é professor em Harvard e entre 1992 e 1993 foi ministro do Planejamento em seu país. Foi também economistachefe do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Num artigo anterior, em julho, descreveu “(...) a natureza sem precedentes da crise econômica na Venezuela, documentando o colapso da produção, da renda e dos padrões de vida e saúde.” No novo texto, assinala que desde então as condições se deterioraram drasticamente, apresentando informações sobre condições econômicas, de nutrição e de saúde, entre outras. Pondera que “(...) a intervenção militar por uma coalização de forças regionais talvez seja o único meio de pôr fim à penúria causada pelo homem (Maduro) que ameaça a vida de milhões de venezuelanos”. E argumenta: “Conforme a situação (...) se torna inimaginável, as soluções a considerar se aproximam do inconcebível”.
As dificuldades de alimentação em que se debate o povo venezuelano – com reflexos na taxa de criminalidade, pois são comuns as brigas por alimentos, até no âmbito familiar – também foram objeto de reportagens recentes. Nesse contexto, veio algo insólito, a chamada “revolta do pernil”.
Na Venezuela, o pernil de porco parece ter status bem forte. Tanto assim é que Maduro prometeu vendê-lo a preços subsidiados perto do Natal e do ano-novo, repetindo procedimento de anos anteriores. Mas não se deu bem com fornecedores estrangeiros do produto, a quem recorreu para complementar a produção local. A propósito, surpreende que o próprio país não seja capaz de atender à sua demanda. Criar porcos e fabricar subprodutos de sua carne, como a linguiça, é atividade que desde tempos imemoriais foi desenvolvida no âmbito familiar. Isso caiu de moda e empresários desenvolveram a criação em grande escala. Mas como fazer isso num país onde o governo se propõe a vender pernis importados a preços subsidiados? É uma porca competição com quem produz, precisa cobrir custos e ter um ganho por sua atividade produtiva.
De Portugal e da Colômbia Maduro encomendou pernis adicionais, mas o primeiro não entregou e da segunda o carregamento veio com atraso. Como resultado, faltaram pernis e sobraram protestos. No último domingo houve até a morte de uma mulher por um militar durante protestos diante de um quartel após não ser confirmada a informação de que chegaria ali um carregamento para venda. Nunca soube de quartel vendendo pernis. Presumo que o governo não tenha querido entregá-los à rede comercial por temer tumultos na distribuição ou, então, quis marcar a oferta como uma benesse do governo e dos militares que o sustentam.
Logo que emergiu a tal revolta, Maduro foi à televisão para se defender. Mas se deu mal. Conforme este jornal do último dia 29, ele esbravejou: “O que aconteceu com o pernil? Eles nos sabotaram. Posso dizer isso de um único país: Portugal. (...) Mas eles nos perseguem. Eles perseguiram nossas contas bancárias. Eles perseguiram dois barcos gigantes que vinham (com os pernis).” Ora, eles quem? Maduro só mencionou Portugal, que não tem força para perseguições como essas.
A razão foi outra. O governo português disse que seu país vive sob a economia de mercado, as exportações cabem às empresas privadas, e uma delas afirmou que o governo venezuelano deve mais de 40 milhões de euros a diversas empresas portuguesas por pernis enviados no ano passado. O embaixador venezuelano no país “garantiu” que o pagamento será regularizado até março de 2018.
Essa “revolta do pernil”, embora de dimensão limitada, é sintoma de algo muitíssimo maior, a crise que Hausmann bem descreve. Subjacente a ela, um populismo ensandecido em seus fragilíssimos fundamentos econômicos. Sucessivas intervenções prostraram o sistema produtivo, pois frequentemente são voltadas para que a produção seja vendida ao preço que o governo quer. Hausmann narra uma dessas intervenções, na estatal de petróleo PDVSA, cuja produção vem caindo rapidamente. Maduro mandou prender cerca de 60 gerentes graduados dessa empresa e nomeou para sua direção um general da Guarda Nacional sem experiência no setor.
E como ele se sustenta no poder? Por doses crescentes de autoritarismo e cooptando militares via cargos no governo. Aqui o lulopetismo continua prestigiando Maduro, que segue a mesma linha desse grupo de recorrer a narrativas enganosas para justificar erros. Como Maduro ao falar em “eles” e suas perseguições, dando a entender que haveria um complô internacional contra si. Quanto a seus próprios e enormes erros, não tem hombridade para reconhecê-los, nem capacidade para se redimir deles.
A “revolta do pernil” é, assim, mais um sintoma gritante do agravamento de uma triste e trágica realidade.
Subjacentes à crise venezuelana estão o populismo e o autoritarismo