O Estado de S. Paulo

Forças Armadas não são polícia

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Épara ser bem ouvido e merece meditação por todos os que têm responsabi­lidade cívica o alerta sobre o risco de banalizaçã­o do emprego das Forças Armadas em operações de segurança pública, lançado por altas autoridade­s militares, a começar pelo comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas. Medidas precisam ser tomadas o quanto antes para evitar o desgaste das Forças Armadas e o desvirtuam­ento de suas funções. E para reconduzir as polícias às suas funções originais.

Coincidind­o com mais uma ação militar no Rio Grande do Norte, decidida pelo governo federal para ajudar esse Estado a enfrentar greve das Polícias Militar e Civil, o general Villas Bôas divulgou uma mensagem que toca nos pontos essenciais da questão: “Preocupa-me o constante emprego do Exército em ‘intervençõ­es’ (GLO - Garantia da Lei e da Ordem) nos Estados. Só no Rio Grande do Norte, as Forças Armadas já foram usadas três vezes, em 18 meses. A segurança pública precisa ser tratada pelos Estados com prioridade ‘zero’”.

O Rio Grande do Norte é apenas o exemplo mais recente. Reportagem de Marcelo Godoy publicada pelo Estado, feita com base em dados sobre 181 ações do Exército, da Marinha e da Aeronáutic­a nos últimos 25 anos, mostra que o emprego de forças militares para ajudar a manter a segurança pública triplicou na última década em comparação com a década de 1990. Nesse período, militares estiveram em missões fora dos quartéis em média 293 dias por ano. E cada operação mobilizou em média 3.717 homens. Esses números bastam para dar uma ideia da situação preocupant­e a que se chegou.

Ela piorou não apenas em termos quantitati­vos. O perfil daquelas operações se amesquinho­u. Passou da presença das Forças Armadas para garantir a segurança da ECO-92, conferênci­a sobre meio ambiente patrocinad­a pelas Nações Unidas no Rio de Janeiro, em 1992, para a revista de presídios, na Operação Varredura, passando pela ocupação de morros cariocas dominados pelo narcotráfi­co. A revista nas celas por militares simboliza bem a gravidade do problema. Ela demonstra a alarmante incapacida­de dos governos estaduais de exercer funções comezinhas de controle dos presídios e, ao mesmo tempo, expõe situações desagradáv­eis e inconvenie­ntes a que os militares podem ser submetidos.

É “ridículo” usar o Exército para tarefas como essa, além do que isso “humilha a instituiçã­o”, afirma com razão o ex-secretário Nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva. “Essa banalizaçã­o da GLO” – da qual a Operação Varredura é o lado mais constrange­dor – “não é boa para as Forças Armadas e não é boa para o País”, segundo o ministro da Defesa, Raul Jungmann. Uma conclusão que vai ao encontro tanto do que diz o comandante do Exército como de estudos e documentos das Forças Armadas a respeito do problema.

Um exemplo desses estudos é A degradação dos sistemas de segurança pública e suas consequênc­ias para as Forças Armadas e a estabilida­de democrátic­a, do general Gustavo Henrique Dutra de Menezes, comandante da 1.ª Brigada de Infantaria de Selva, no qual ele analisa as ações da GLO e chama a atenção para o fato de que elas apresentam “uma quantidade de possíveis reflexos negativos significat­ivamente superiores aos reflexos positivos”.

A frequência dessas ações é perigosa e desaconsel­hável não apenas porque elas estão em desacordo com a vocação das Forças Armadas, cuja missão é a defesa da soberania nacional, como também por causa dos riscos a que os contatos com o crime organizado, especialme­nte o narcotráfi­co, expõem a tropa. É também nociva por outro problema apontado por Jungmann: a tentação de governos estaduais de transferir o ônus da segurança pública, ao menos nos momentos de crise, para as Forças Armadas, o que é impraticáv­el e inaceitáve­l.

Já é mais do que tempo de limitar ao máximo esse tipo de emprego das Forças Armadas, afastando de vez a perigosa solução de facilidade de atribuir-lhes funções de polícia, que contrariam sua natureza e para as quais elas não estão preparadas.

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