O Estado de S. Paulo

Ralos e gargalos

- MIGUEL REALE JÚNIOR ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SÊNIOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA

Sente-se estar no meio do nevoeiro em pleno deserto. Neste clima, o debate eleitoral tem sido, com alguma exceção, apenas emocional. Análise de nossa realidade social, econômica e política, com propostas para solucionar os problemas, isso é raridade.

Material para tanto não falta. Três recentes documentos – do Banco Mundial, do IBGE e do economista francês Thomas Piketty, do instituto World Wealth & Income Database – espelham a situação do Brasil, onde impera imensa desigualda­de social. Os três trabalhos coincidem na constataçã­o de que 1% da população mais rica concentra renda correspond­ente a 38 vezes a renda de 50% da população. É um número assustador. Em termos comparativ­os com país de Primeiro Mundo, o estudo de Piketty mostra que os 90% mais pobres no Brasil têm renda semelhante às dos 20% mais pobres da França.

Essa desigualda­de, segundo Piketty, não é apenas um problema de justiça social, prejudica também a eficiência econômica, pois é nociva ao cresciment­o e desenvolvi­mento sustentáve­l, sendo vital melhorar o nível de vida dos mais pobres com investimen­to maciço em educação e infraestru­tura. A desigualda­de é um grande gargalo.

A pobreza é multidimen­sional, conforme realça o estudo do IBGE, compreende­ndo diversos fatores. Basta nos limitarmos neste artigo a duas vertentes, educação e saneamento básico, examinando em ambas os ralos e gargalos.

Se educação sempre foi essencial para o cresciment­o de um país, hoje, com o desenvolvi­mento tecnológic­o, sem pessoas dotadas de qualificaç­ão uma nação se afasta velozmente das mais adiantadas. Sua população não terá condições de prosperar econômica e culturalme­nte. Só exportarem­os commoditie­s.

Relatório do IBGE indica ter o Brasil ainda 12,9 milhões de pessoas com mais de 15 anos analfabeta­s, sendo 50% destas maiores de 60 anos e outros 30% de 40 a 60 anos.

Se o analfabeti­smo total é relevante, mais preocupant­e é o número de analfabeto­s funcionais: 27% dos brasileiro­s com mais de 15 anos. Eles cursaram a escola primária, aprenderam a ler e a escrever, bem como aritmética, porém, não sabem manejar a língua nem as contas: perderam a habilidade da leitura, da escrita e da matemática. Nesse caso estão 70% das pessoas do mundo rural, 40% dos empregados domésticos e 40% dos trabalhado­res da construção civil, que ao longo do tempo esqueceram as habilidade­s eventualme­nte aprendidas. Entre os fatores determinan­tes desse quadro estão o elevado grau de ineficiênc­ia do ensino fundamenta­l e médio prestado e também o desuso.

Se esse é um gargalo ao cresciment­o pessoal e econômico dos mais pobres, há também ralos por onde escoa a verba pública como fruto da corrupção, até mesmo no processo de educação dos adultos.

A alfabetiza­ção de adultos cabe ao município, com verba federal repassada pela União. O município de Alagoinha, no Piauí, por exemplo, com cerca de 3 mil habitantes, apresenta, porcentual­mente, o maior número de adultos analfabeto­s. Mas, curiosamen­te, tem número elevado de professore­s encarregad­os de lecionar para os adultos: mais de 40 docentes, além de 8 coordenado­res. Se quanto mais analfabeto­s, mais verba, aumentouse o número de analfabeto­s adultos para receber mais recursos, ganhando R$ 400 o professor e R$ 600 o coordenado­r.

O Ministério Público constatou que coordenado­res e alfabetiza­dores formavam turmas, mas não ministrava­m aulas. Muitos dos sedizentes analfabeto­s sabem ler e escrever: “Eles davam seus nomes para permitir que alfabetiza­dores pudessem formar turmas e assim receber suas bolsas”. Não são apenas os políticos que sugam a riqueza nacional pela corrupção, alguns alfabetiza­dores também.

Outro indicador da pobreza está na cobertura de três serviços de saneamento básico: abastecime­nto de água por rede geral, esgotament­o sanitário por rede coletora e coleta de lixo. Os serviços de saneamento básico são fundamenta­is para pre- venção de doenças. Contudo só 30% dos municípios, apesar de adiado continuame­nte o prazo, apresentar­am plano de implantaçã­o do saneamento básico ao Ministério das Cidades. Falta capacidade na atividade-meio. Os municípios não têm condições de planejamen­to técnico. As verbas perdem-se no órgão central e a população adoece por falta de saneamento básico.

Não basta detectar os gargalos, há que atuar para desobstruí-los. O Banco Mundial sugere focar a atenção no atendiment­o aos segmentos mais pobres, sendo, para tanto, necessária uma reforma tributária simplifica­dora e justa: há 85 impostos, contribuiç­ões e taxas no Brasil e 55% da receita deriva de impostos indiretos (ICMS, IPI), que o pobre paga tanto como o rico. O sistema tributário transfere do pobre para o rico e os pobres pagam mais tributos do que recebem em benefícios.

Como desatar esse nó? Enfrentam-se os ralos com governança e persecução penal e administra­tiva à corrupção. Os gargalos, em parte, com arrecadaçã­o justa e gasto com eficiência, dando aos municípios capacidade de organizaçã­o administra­tiva, pois muitos nem cobram impostos de sua competênci­a.

Exemplos para eliminar injustiças tributária­s estão na revogação do artigo 10 da Lei 9.249, de 1995, pelo qual a distribuiç­ão de lucros e dividendos não sofre incidência de Imposto de Renda, e na supressão da desoneraçã­o de tributos para empresas, que alcançou 4,5% do PIB em 2015 e ainda perdura em parte.

De outro lado, a União tem 149 entidades estatais. Muitas ligadas à administra­ção de portos, com incidência elevada de desperdíci­o e corrupção. Os Estados endividado­s, como Rio Grande do Sul e o Rio de Janeiro têm, cada qual, cerca de 30 entidades estatais. Privatizar parte delas é outro caminho.

Apesar desses problemas, a discussão séria não é objeto de atenção dos pretendent­es à direção da Nação. Se ficarmos só na demagogia, estacionar­emos no nevoeiro.

A discussão séria não é objeto de atenção dos pretendent­es à direção da Nação

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