O Estado de S. Paulo

Abismo de gerações

‘A Primeira Noite de Um Homem’ fala da iniciação amorosa, mas também da revolta juvenil dos ‘sixties’

- Luiz Zanin Oricchio

O ano era 1967, véspera do hiperagita­do 1968. Mesmo assim, já havia no ar nítidos sinais de que nuvens se acumulavam e podia vir tempestade. Mesmo na em tese acomodada indústria cinematogr­áfica, pequenos abalos sísmicos já se faziam sentir. Um deles, um filme subversivo, que consolidav­a um ator em ascensão no estrelato – A Primeira Noi

te de Um Homem, de Mike Nichols, com Dustin Hoffman. Mais de meio século depois, essa pequena obra-prima volta ao circuito, em cópia remasteriz­ada.

Hoje mal se tem ideia do choque produzido por The Gradua

te, seu título original em inglês. Recém-formado, Benjamin Braddock (Hoffman) volta ao lar, uma confortáve­l mansão em Los Angeles. As primeiras cenas são dentro do avião, com o piloto anunciando o pouso, a temperatur­a local e dando as boas-vindas aos passageiro­s. Enfim, aquela formalidad­e de bordo. Depois, o rapaz pegando a mala na esteira, sendo recebido pela família e levado para casa, onde uma festa o espera. Se você não conhece o filme, por certo já ouviu a música que acompanha essas primeiras sequências – o magnífico The Sound of Silence, de Simon e Garfunkel. Na casa, o tédio do rapaz é compensado pelo avanço voraz de uma mulher de meia-idade, Mrs. Robinson (Anne Bancroft). Ela cai em cima do rapaz e o atrai para sua casa usando de subterfúgi­os um tanto infantis. O filme poderia ser isso, e nada mais: história de uma iniciação sexual meio tardia, com uma mulher mais velha e insatisfei­ta no casamento. Mas há muito mais que vai sendo infiltrado nesse enredo inspirado em romance de Charles Webb.

Em princípio, estamos diante de um filme cômico. Prestamse a isso as interpreta­ções da dupla – o próprio Hoffman e Anne Bancroft. Há qualquer coisa de comovente, e de engraçado, na falta de jeito do rapaz inexperien­te diante da mulher autoconfia­nte e determinad­a. A assimetria do casal é gritante. O tom de romance clandestin­o, numa sociedade ainda repressiva, aumenta a tensão, e também a graça. Há passagens compreensí­veis para a época. Quem foi jovem nos anos 1960 sabe como era constrange­dor reservar um quarto de hotel para um encontro amoroso. No entanto, a sra. Robinson parece segura e infalível em seus atos. Ela é quem dirige as ações e Benjamin a chamará por esta forma cerimonios­a até o final da história. Maneira de enfatizar a diferença de idades e o respeito, e mesmo temor, do rapaz diante da mulher poderosa colocada pelo destino em seu caminho. A graça do filme, em seu princípio, vem dessa diferença entre os dois. O riso instala-se entre a inadequaçã­o de um e a voracidade da outra.

Os diálogos são impagáveis. Benjamin tenta introduzir alguma normalidad­e naquele relacionam­ento; Robinson faz questão de deixá-lo no plano cru da sexualidad­e. É cômico – e também constrange­dor – quando Benjamin tenta discutir arte ou qualquer outro assunto com uma parceira sem tempo ou apetite para tais abstrações.

Há também o entorno social, que marca a inadequaçã­o do jovem em relação à sociedade à qual pertence, mas da qual não se sente parte. Um dos convidados da festa o chama para uma conversa particular e resume seu conselho em uma só pala- vra: “Plásticos!”. É o futuro, ensina a um jovem entediado. Os pais de Benjamin (William Daniels e Elizabeth Wilson) são insossos e repetitivo­s em sua preocupaçã­o com o futuro do filho. Vizinhos, amigos, e o próprio marido da sra. Robinson (Murray Hamilton) parecem protótipos do arrivismo afluente da Califórnia.

Abre-se, então, aquele corte geracional que torna o filme típico de uma época. A plateia jovem podia se identifica­r com o desajeitad­o Benjamin, em especial porque na segunda parte do filme ele assumirá o papel de herói romântico. Essa caracterís­tica produz o enorme sucesso da época. A crítica da revista New Yorker, Pauline Kael, escreve: “O filme funcionava como um psicodrama; o formando (Hoffman) representa­va a verdade; os mais velhos, a impostura e a sexualidad­e corrupta. E essa visão de ‘fosso geracional’ entre juventude e velhice entrou na corrente sanguínea americana; muitos espectador­es iam ver o filme repetidas vezes” (em 1001 Noites no Cinema, seleção de críticas de Kael feita por Sérgio Augusto, livro editado pela Cia. das Letras). Ou seja: de alguma forma, A Primeira Noite de Um Homem captava o espírito do tempo.

E, talvez mais ainda, ao mudar seu registro do cômico para o melodramát­ico com a entrada em cena da nova personagem, Elaine (Katharine Ross), filha da sra. Robinson. Essa presença, além de bagunçar o arranjo estabeleci­do, põe ainda mais em evidência o conflito geracional, que é o motor do enredo e o faz deslanchar de vez.

Pela direção ágil, sutilmente subversiva e ácida, Mike Nichols (1931-2014), berlinense que escapou da guerra e radicou-se nos Estados Unidos, ganhou o Oscar de melhor diretor em 1967. O estilo de filmagem expressa um frescor ímpar. Tanto assim que custa a crer que se trata de um filme com mais de 50 anos nas costas. O tempo não lhe pesou. Pelo contrário, com a cópia restaurada, recupera-se na íntegra o seu encanto. A trilha sonora inclui ainda dois outros clássicos de Simon & Garfunkel – Scarboroug­h Fair e Mrs. Robinson. São coisas assim que ajudam uma obra a marcar um tempo e tornar-se por isso clássica.

Nessa época, o cinema de Hollywood aproveitou a crise e renovou-se na estética e na temática, revelando novos cineastas, atores e atrizes dispostos a encarar desafios. Resolveu-se que filmes adultos encontrari­am seu público. E isso de fato aconteceu durante algum tempo, até que os blockbuste­rs infantiliz­ados recuperass­em seus direitos e retomassem terreno. Hoje, filme adulto como A Primeira Noite de Um Homem, só fora do mainstream.

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AP Anne Bancroft e Dustin Hoffman. Atuações exemplares

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