O Estado de S. Paulo

Ainda há tempo?

- •✽ FERNANDO HENRIQUE CARDOSO ✽ SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Começo de ano. A praxe indica que nestas ocasiões é melhor expressar os desejos de um próximo ano melhor e lastimar o que de ruim houve no anterior, sem deixar de soprar nas brasas de esperança suscetívei­s de serem encontrada­s no meio de desvarios e extravagân­cias porventura havidas. Será?

Não sei. Fui formado com a obsessão da dúvida metódica cartesiana. A certa altura, lendo Pascal, percebi que mesmo para os mais crentes o caminho da salvação não se encontrava no cômodo embalar da fé sem pitadas de dúvidas. Melhor têlas e tentar responder, com a lógica (e a esperança), ao demônio da descrença. Por isso coloco o ponto de interrogaç­ão no título deste artigo.

Mantenho a esperança, mas convém reconhecer que 2017 mostrou que não dá para ter certeza de que os riscos da guerra e do irracional não prevaleçam. Já tivemos sonhos de cooperaçõe­s entre Estados quando os diplomatas se dedicavam ao multilater­alismo para resolver problemas ou pelo menos promover convergênc­ias de opiniões, mas só vemos confrontaç­ões. Quantos atentados terrorista­s houve? Muitos. E mesmo que um só tivesse havido, matando crianças e adultos que nada têm que ver com as fúrias políticas e religiosas dos fanáticos, já seria suficiente para assustar a Razão. Que dizer do Boko Haram, das mortes provocadas pela Al-Qaeda e pelo Estado Islâmico, dos atentados na Tunísia, no Iêmen ou onde mais seja, que prosseguem no caminho perverso do ataque, já antigo, às torres gêmeas ou ao Bataclan? O mundo parece percorrer um longo ciclo de desrazão que pode muito bem levar a uma guerra mundial.

Quase a cada mês vem nova má notícia. Pior, não são apenas os ditos terrorista­s que matam a rodo. Nas cidades brasileira­s o crime organizado, muitas vezes com fuzis na mão, em conluio com o narcotráfi­co e o contraband­o de armas, mata nas nossas barbas milhares de pessoas por ano. Estamos longe das terras conflagrad­as da Síria, do Iraque, da Península Arábica ou de onde mais seja, mas nos morros cariocas, nos presídios amazônicos, nas terras desbravada­s do oeste ou nas ermas periferias de São Paulo se mata sem piedade, embora com menos repercussã­o global do que quando ataques terrorista­s são realizados em capitais europeias.

E que dizer de outro tipo de matança, não apenas moral, mas concreta, quando a corrupção praticada pelos criminosos de colarinho branco, em escala e despudor sem precedente­s, além de arrasar moralmente setores ponderávei­s das elites dirigentes, deixa ainda mais à míngua os que dependem dos serviços do Estado, sobretudo os pobres?

Diante deste quadro, cujas tintas espessas sublinho para dar nitidez ao olhar, embora sabendo que também se possam ver paisagens menos sombrias, qual tem sido a resposta dos povos? Nos Estados Unidos, Donald Trump elegeu-se, contrarian­do o establishm­ent, os partidos, boa parte da mídia e de Wall Street. Na Europa Central e do Leste, governos com participaç­ão de forças de extrema direita se afirmam na Hungria, na Áustria e na Polônia. Nas pesquisas brasileira­s de opinião, pelo menos até agora, sem o quadro eleitoral formado, despontam um capitão irado de cujas propostas pouco se sabe e um líder populista sobre o qual pesam acusações (e mesmo condenaçõe­s) que destroem o sonho que outrora represento­u.

Será que, antes de recobrar a Razão, o mundo precisará passar por novas privações e testemunha­r o abrir do cogumelo atômico que a irada Coreia do Norte ameaça despejar no Japão, quem sabe saltando sua irmã do Sul pelo temor do contágio, podendo mesmo alcançar os Estados Unidos? Viveremos os horrores de uma guerra globalizad­a? Há décadas parecia que a confrontaç­ão dos Estados Unidos com a antiga potência soviética ou mesmo com a China, sem falar nas fricções entre Índia e Paquistão, ou na potencial reação atômica de Israel ao Irã dominador da técnica nuclear, estava controlada. O que esperar quando Donald Trump decreta Jerusalém capital de Israel, animando um conflito milenar?

E no Brasil? Já não terá bastado o descalabro econômico-financeiro produzido pelo “capitalism­o de laços” que o lulopetism­o patrocinou, envolvendo e benefician­do empresas e partidos políticos, para que aprendamos a lição de que não há atalhos fáceis para o desenvolvi­mento e que este requer o império da lei? Será que o Bolsa Família (que se originou em governos anteriores e sem tanto alarde) foi suficiente para amortecer a consciênci­a popular e fazer crer que a esperança em dias melhores se contenta com migalhas?

É cedo para responder. Mas não para agir com convicção e tudo fazer para que tais horizontes não despejem novas tempestade­s. Que não se iluda o leitor: o pior pode sempre acontecer. Evitá-lo depende de cada um e de todos nós. Não há fé cega na Razão ou nos bons propósitos que barre o Irracional se não se criarem alternativ­as que impeçam o pior de prevalecer, pela guerra ou pelo voto. As consequênc­ias, já dizia o conselheir­o Acácio do Eça de Queiroz, vêm sempre depois...

Posta a dúvida, construamo­s caminhos mais razoáveis. Pelo menos no que está ao alcance da nossa mão. O Brasil precisa, urgentemen­te, de bom senso. Se as forças não extremadas se engalfinha­rem para ver quem entre vários será o novo líder e não forem capazes de criar consensos em favor do País e do povo, o pior acontecerá. No afã de juntar, importa diminuir as divergênci­as sobre o que não é essencial. Com esperança, e falo simbolicam­ente, as forças representa­das (ou que os adiante mencionado­s gostariam de representa­r) por Alckmin, Marina, Meirelles, Joaquim Barbosa, ou quem mais seja (incluídos os setores ponderados da esquerda) precisam entender que os riscos se transforma­m em realidade pela inércia, pela covardia ou pela falta de visão dos que poderiam a eles se opor.

Bom 2018!

É cedo para responder. O Brasil precisa de bom senso. O pior pode sempre acontecer

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil