RETRATO DO HOMEM QUE VENCEU O MAL
Um onívoro cultural escrevendo sobre outro e está aí este detalhista, meticuloso e soberbo livro: Peste e Cólera (Editora 34, 216 pág., R$ 52) em que o francês Patrick Deville narra a vida e a obra do suíço Alexandre Yersin (1863-1943), um dos mais brilhantes discípulos do cientista Louis Pasteur (1822-1895). “Escrever uma vida é tocar violino lendo uma partitura” – diz uma frase pinçada da obra.
Peste e Cólera é mais um dos romances sem ficção de Deville, série a que ele se dedica desde 2004 em uma obstinada investigação sobre o destino das utopias e esperanças modernas. Sem ficção porque é tudo verdade, óbvio. Deville pesquisa e apura in loco. Viaja até o outro lado do mundo por vezes para escrever um simples parágrafo porque, como costuma dizer, seus personagens reais se deslocam por espaços geográficos; e para escrever sobre eles, também o autor precisa seguir tais passos.
O francês insiste: não faz literatura de viagem. Mas em sua literatura sem ficção, o narrador se desloca. Porque o personagem é um aventureiro. Ainda na Europa, Yersin estudou a difteria e a tuberculose. Depois, cismou virar médico de bordo no Oriente. Inventou um refrigerante que poderia ter se tornado a Coca-cola – ele nunca tirou a patente da bebida escura e gasosa, batizada de Kola-Canela, com a abreviatura possível de Ko-Ca. Viveu em uma vila de pescadores. Dedicou-se à agricultura. Depois, à borracha. Yersin estudou astronomia e galinhas. Entusiasmou-se com a fotografia. Colecionou pássaros exóticos.
Mirava no britânico David Livingstone (18131873), explorador que desbravou o continente africano e foi o primeiro homem branco a avistar o rio Zambeze e as impressionantes cataratas de Vitória. Queria fazer na Ásia o que Livingstone fez na África.
Em Hong Kong, Yersin descobriu o bacilo da peste bubônica. Yersinia pestis.
Yersin inventou a vacina contra a peste bubônica.
Jamais ganhou o Nobel.
Virou ermitão, excêntrico, morando em uma cabana, cultivando barbas longas. Recusou-se a receber jornalistas – estes, que inventassem versões para explicar como ele derrotara a peste. Yersinia pestis.
“Como descobriu o bacilo e venceu a peste. Trocou a Suíça pela Alemanha, o Instituto Pasteur pela companhia Messageries Maritimes, a medicina pela etnologia, e esta pela agricultura e a arboricultura. Como, na Indochina, foi um pioneiro da bacteriologia, explorador e cartógrafo. Como percorreu durante dois anos a terra dos moï antes de chegar à dos sedang”, enumera passagem do livro que busca resumir a atribulada vida do cientista transformado em protagonista literário. “(...) sobre seus caprichos e suas invenções, a horticultura e a criação de animais, a mecânica e a física, a eletricidade e a astronomia, a aviação e a fotografia. Como se tornou o rei da borracha e o rei do quinino. Como foi a pé de Nha Trang ao Mekong e a Phnom Penh, para depois viver cinquenta anos nessa vila à beira do Mar da China.”
Sua genialidade era tanta que, Deville rendese, é “como se Pasteur o tivesse inventado por inteiro”.
Vale frisar, aliás, que o estilo adotado pelo escritor para retratar o cientista, se por um lado demonstra alto rigor e milimétrica precisão, por outro, é lacônico, direto, de frases curtas e parágrafos breves. Parece querer dizer que Yersin também era um sujeito de poucas e certeiras palavras. E a versão brasileira, traduzida pela jornalista Marília Scalzo, quanto à escolha vocabular nada deixa a desejar para a original, lançada na França em 2012 – e lá laureada com o Prêmio Femina no mesmo ano.
Personagem extraordinário, daquele tipo que se não tivesse havido precisaria mesmo acabar sendo inventado. Livro escrito com ritmo e vigor. Receita ótima para uma obra de leitura empolgante, gostosa, cativante.
“Yersin, se fosse católico, seria feito santo, seria canonizado imediatamente como aquele que venceu a peste, pelo modo como a história parece ter inspiração sobrenatural”, ressalta trecho da obra. E outro, para emendar: “Yersin não se ilude com relação a sua notoriedade. Sabe que deixará atrás de si somente essas duas palavras em latim, Yersinia pestis, e que só os médicos conhecerão.”