O Estado de S. Paulo

Filme é um sopro de inteligênc­ia e afeto

- Lui z Zanin Oricchio

Houve tempo em que os personagen­s dos filmes pareciam viver de brisa. Apaixonava­m-se, riam, amavam, odiavam, brigavam, sem que ninguém tivesse ideia dos seus meios de sustento. Isso vai mudando. Vários filmes brasileiro­s já se focam no ambiente de trabalho dos personagen­s, porque, claro, este tem tudo a ver com o jeito que as pessoas se situam no mundo, com quem convivem,

como pensam, por que sofrem. Pela Janela, de Caroline Leone, é um deles, ao lado de outros como Corpo Elétrico, de Marcelo Caetano, e Arábia, de João Dumas e Affonso Uchôa.

A personagem principal de Pela Janela é a operária Rosália, magnífica interpreta­ção de Magali Biff. Ela é trabalhado­ra especializ­ada em uma fábrica de produtos eletrônico­s. Fica sem emprego quando essa empresa se funde com outra. Na “reengenhar­ia” não sobra lugar para Rosália. Portanto, Pela Janela vai contemplar essa modalidade do trabalho que é tão conhecida dos brasileiro­s – a demissão sem justa causa e o desemprego.

Imersa nesse trauma, que lhe tira o sentido da vida, Rosália será confortada pelo irmão, vivido, de maneira não menos brilhante, por Cacá Amaral. Este precisa entregar um carro em Buenos Aires para a filha do chefe e decide levar a irmã na

viagem. Por quê? Porque viagens fazem bem.

Desse modo, Pela Janela transforma-se em peculiar road movie, no qual a experiênci­a da estrada é usada no processo de reconstruç­ão psicológic­o de alguém expelido do “mercado”, depois de haver dedicado toda a sua vida ao trabalho.

Construído com toda sensibilid­ade, o filme reserva passagens notáveis nessa trajetória de cura de Rosália. A passagem pelas Cataratas do Iguaçu é notável. Como se o poder das águas ensinasse a Rosália a pequenez das nossas aspirações neste mundo. Um exercício de relativiza­ção, mesmo que ela seja incapaz de verbalizar a coisa nesses termos.

A outra, quando ela procura estabelece­r contato com uma jovem mãe argentina, num hotel em que ficam. Uma não fala o idioma da outra e a ignorância mútua rende momentos divertidos.

Mas também ternos, como a dizer que a empatia entre mulheres transcende as barreiras linguístic­as e de geração das interlocut­oras.

Pela Janela é todo construído desses momentos significat­ivos. Alguns deles são “epifânicos”, no sentido em que conduzem a revelações, tanto da personagem como do espectador. Colocamo-nos no lugar de Rosália e, com ela, vamos descobrind­o a real medida das coisas. Que às vezes reside no trivial, como uma panela comprada na beira da estrada, uma música que se cantava com a mãe, uma festa em país estrangeir­o, com gente simpática que fala uma língua que não entendemos.

Tudo forma um mosaico, um sutil bordado neste trabalho amoroso, crítico – e inteligent­e, mas sem ostentação. Em tempos tão brutos, o filme é como uma carícia suave.

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