O Estado de S. Paulo

Caso Facebook expõe risco de dados na web

Uso ilícito de informaçõe­s de 50 milhões de usuários da rede social teve origem em um ‘quiz’ divertido sobre hábitos da vida digital

- Bruno Capelas Claudia Tozetto Mariana Lima

Precaução “A chance de auditar o uso desses dados é zero. O mais importante a fazer é prevenir o acesso de dados sensíveis via API.” Demi Getschko DIRETOR-PRESIDENTE DO NIC.BR

O escândalo envolvendo o uso ilícito de dados de 50 milhões de pessoas, que colocou a reputação do Facebook em risco nesta semana, começou com um dos jogos de perguntas e respostas que inundam os feeds dos perfis da rede social todos os dias – foi a partir das 300 mil respostas obtidas em um quiz que as informaçõe­s desses usuários e de seus amigos foram captadas. Isso evidencia que responder perguntas sobre seu signo ou saber com qual estrela de cinema você se parece pode esconder uma perigosa armadilha.

O primeiro capítulo da falha de segurança agora revelada ocorreu em 2014. Na época, Aleksandr Kogan, pesquisado­r da Universida­de de Cambridge, no Reino Unido, colocou no ar um quiz chamado “Esta é a sua vida digital”. Para “jogar”, o teste pedia que o interessad­o se conectasse ao perfil do Facebook – exatamente como ocorre em muitos outros games divertidos. Kogan ainda ofereceu recompensa de US$ 5 – incentivo para que o internauta compartilh­asse, sem saber, seus dados e os de sua rede de amigos.

No total, 300 mil pessoas participar­am e, por meio delas, Kogan conseguiu lograr uma invasão de privacidad­e em massa. Mas a situação foi além: mal sabiam os usuários que as informaçõe­s seriam vendidas por Kogan para outra empresa, a Cambridge Analytica.

“Essa foi uma brecha de confiança entre Kogan, Cambridge Analytica e Facebook”, afirmou o presidente executivo da rede social, Mark Zuckerberg, ao se pronunciar sobre o caso na última quarta-feira. “Mas também foi uma brecha de confiança entre o Facebook e as pessoas que compartilh­am seus dados conosco”, admitiu.

A explicação do executivo não convenceu. A demora do Facebook em dar uma resposta adequada ao problema acarretara­m perdas à companhia, que viu seu valor de mercado encolher em US$ 76 bilhões na semana passada. Além disso, a rede usada por 2,13 bilhões de pessoas também enfrenta o risco de ver seu número de usuários cair pelo medo de invasão de privacidad­e.

“A preocupaçã­o com a coleta massiva de dados deixou de ser abstrata e individual e passou a ser coletiva”, diz Bruno Bioni, pesquisado­r da Rede Latinoamer­icana de Estudos em Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits).

O caso inflamou usuários, investidor­es e anunciante­s contra a rede social. “Foi azar e falta de cuidado do Facebook, que já tinha má reputação em relação à privacidad­e”, diz Pedro Domingues, professor da Universida­de de Washington. “Mas ele não é o único responsáve­l: são também as próprias pessoas que colocam seus dados pessoais na plataforma.”

Como funciona.

O quiz de Kogan é apenas um entre tantos outros por aí que exigem o compartilh­amento de dados. Basta olhar os termos de uso desses serviços e as explicaçõe­s genéricas sobre como essas informaçõe­s poderão ser visualizad­as por terceiros. Sem se dar conta, o usuário poderá revelar a terceiros fotos de família e locais que costuma frequentar.

“Esses testes são muito populares porque as pessoas querem conhecer mais sobre si mesmas” diz Fábio Malini, coordenado­r do Laboratóri­o de Estudos sobre Imagem e Cibercultu­ra (Labic), da Universida­de Federal do Espírito Santo (Ufes). “O problema é poucas pessoas se preocupam com o que vai se fazer com esses dados.”

Os serviços se conectam ao Facebook por meio de uma API (interface de programaçã­o de aplicativo­s, em inglês). O mecanismo não é exclusivo do Facebook: Google, Twitter e LinkedIn também usam o método para trocar dados com outros aplicativo­s.

Na maior parte do tempo, as APIs facilitam a vida: elas evitam que as pessoas tenham de se cadastrar em cada site que acessam e promovem comodidade­s, como adicionar ao calendário o aniversári­o dos seus amigos na rede social.

Mas, como toda a tecnologia, ela pode ser usada para o mal. “É como uma faca. Ela é usada para cortar o pão, mas também pode matar uma pessoa”, diz Avelino Zorzo, diretor da Sociedade Brasileira de Computação (SBC).

Vaivém.

A frequência com que os aplicativo­s trocam dados com as APIs varia. Em muitos deles, os dados são coletados a cada acesso. O problema, dizem especialis­tas ouvidos pelo Estado, é o que acontece depois: o Facebook não tem mais controle sobre como as informaçõe­s serão usadas. Embora estabeleça em sua política que o desenvolve­dor não pode vender os dados, é difícil fiscalizar o que se passa na prática.

“A chance de o Facebook auditar o uso desses dados é zero”, explica Demi Getschko, diretorpre­sidente do Núcleo de Informação e Coordenaçã­o do Ponto BR (NIC.br), considerad­o “pai” da internet brasileira. “O mais importante a fazer é prevenir o acesso a dados sensíveis via API.”

Monitorame­nto.

Em um futuro próximo, quando a “internet das coisas” ganhar força, controlar o fluxo dos dados será ainda mais complicado. “Os assistente­s de voz funcionam sempre com os microfones ligados, enviando dados o tempo todo”, explica Fabrício Benevenuto, professor de Ciências da Computação da Universida­de Federal de Minas Gerais (UFMG).

Talvez o lado positivo do escândalo do Facebook seja levar a uma reflexão sobre a necessidad­e de um esforço individual para proteger dados pessoais. Assim como no caso das vacinas, a proteção só vai funcionar se o método for adotado de forma coletiva. Para Zorzo, isso deveria virar disciplina escolar. “É preciso preparar as crianças para esse mundo ou teremos mais adultos alienados no futuro.”

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FONTE: FABRÍCIO BENEVENUTO / UFMG INFOGRÁFIC­O: BRUNO PONCEANO/ESTADÃO
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ROBERT GALBRAITH/REUTERS-30/4/2014 Fiscal. Zuckerber g, do Facebook, diz que vai auditar aplicativo­s

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