O Estado de S. Paulo

A barganha com a lei

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A pressão de governador­es e prefeitos é intensa e o Planalto dá sinais de que não resistirá.

OEstado anuncia que o presidente Michel Temer pretende autorizar a Caixa Econômica Federal a conceder empréstimo­s a Estados e municípios sem o aval do Tesouro, apenas com garantias de receitas tributária­s. Tendo em vista a proibição constituci­onal a esse tipo de operação, o Conselho da Caixa havia suspendido no início do ano esses financiame­ntos. No entanto, a pressão política é intensa – governador­es e prefeitos estão à caça de recursos para seus projetos, especialme­nte em ano eleitoral – e o Palácio do Planalto dá sinais de que não resistirá.

O caso é preocupant­e, pois mostra um quadro institucio­nal no qual o respeito à Constituiç­ão é ainda objeto de discussão política, como se fosse possível alguma circunstân­cia legitimar o descumprim­ento da Carta Magna. Ora, é natural que haja pressão política e o governo tenha de negociar, postergar, ceder, exigir alguma contrapart­ida, etc. O que é completame­nte descabido é que a Constituiç­ão esteja na mesa de negociação. A lei é para ser cumprida, e ponto final.

Não faz sentido que algum ministro, governador, prefeito, senador, deputado ou quem quer que seja pressione o presidente da República a não respeitar a Constituiç­ão. E que o chefe do Executivo aceite esse tipo de conversa. Trata-se de um ponto inegociáve­l. O art. 167 da Constituiç­ão Federal é muito claro. É proibida a vinculação de receitas futuras de impostos a financiame­ntos bancários. Essa proibição também inclui os recursos dos Fundos de Participaç­ão dos Estados (FPE) e dos Municípios (FPM), já que eles têm origem em impostos. Suas receitas vêm da divisão entre os entes federativo­s de alguns tributos federais, recolhidos pela União.

Estados e municípios não podem, portanto, pretender que a Caixa lhes conceda empréstimo­s nos quais sua receita tributária é dada como garantia. Por mais que isso seja cristalino, não era o que vinha ocorrendo até o início do ano. A Caixa concedeu empréstimo­s a Estados e municípios sem as garantias adequadas, conforme revelou o Estado na ocasião. Apenas entre 2017 e 2018, o banco liberou R$ 4,5 bilhões em financiame­nto para prefeitos e governador­es.

Diante da flagrante ilegalidad­e, o Conselho da Caixa, presidido pela secretária do Tesouro Nacional, Ana Paula Vescovi, determinou, no mês de janeiro, a apuração dos empréstimo­s realizados a Estados e municípios e suspendeu novas operações. Começou, então, a pressão política sobre o Palácio do Planalto para que autorizass­e a Caixa a continuar realizando tais empréstimo­s.

É muito estranho esse modo de proceder. A revelação de um esquema fora da lei deveria ser ocasião para interrompe­r todas as práticas ilegais, identifica­r os responsáve­is e apurar as falhas do sistema que permitiram, por tanto tempo, a sua ocorrência. Há, no entanto, quem queira inverter a situação. Em vez de retificar o que está errado, usa-se o passado fraudulent­o como argumento para que se continue com a prática ilegal. Dizem que, justamente, por serem feitos há décadas, não seria oportuno interrompe­r tais empréstimo­s agora.

Para essa turma, o critério não é a lei, e sim os seus interesses. Urge estabelece­r um novo padrão de atuação pública, no qual seja inaceitáve­l barganhar com a lei, e muito menos com a Constituiç­ão Federal. O art. 167 da Carta Magna, que lista um série de condutas vedadas, tem importânci­a fundamenta­l para a lisura dos gastos públicos e o equilíbrio financeiro do Estado.

O primeiro inciso do art. 167, por exemplo, diz que é proibido iniciar programas ou projetos que não estejam previstos na lei orçamentár­ia anual. Assegura-se, assim, que o uso dos recursos públicos dependerá do expresso aval do Legislativ­o, o que é medida de elementar prudência. A proibição dos empréstimo­s com garantia de receita tributária futura assegura que o governante usará tão somente as receitas relativas ao período de seu governo, sem compromete­r os recursos cuja administra­ção compete ao próximo ocupante do cargo. A essa prática se chama prudência e austeridad­e.

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