O Estado de S. Paulo

Nove meses

Neste dia 25, cristãos celebram o anúncio que o arcanjo Gabriel fez a Maria.

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

Talvez seja uma má notícia para dar logo assim, pela manhã, à queima-roupa: daqui a exatos nove meses, teremos o Natal. Sim, eu sei, estimado leitor e querida leitora, você mal se recuperou dos gastos das festas de 2017 e este cronista inconvenie­nte vem trazer à tona o primeiro sinal de que tudo ocorrerá de novo. Volta o desafio da logística familiar para a ceia e ressurge o ambiente tenso e sobrecarre­gado nos shoppings. Sim, muitas confratern­izações e amigos secretos e, completand­o uma contraditó­ria via-sacra natalina, você vai imaginar que foi servido por mais funcionári­os do que o Rei-Sol, pois a quantidade de caixinhas demandadas no fim do ano revelará sua vida de nababo. De novo: faltam nove meses para o Natal.

A data de hoje é fácil de guardar: estamos na festa da Anunciação. No dia 25 de março, cristãos celebram o anúncio que o arcanjo Gabriel trouxe a uma adolescent­e. Ela engravidar­ia, daria à luz um ser especial e todas as gerações seguintes louvariam o dia em que ela disse o sim ou, na tradição católica, o “fiat” (faça-se) a vontade do Altíssimo. Tudo ocorreria sem a colaboraçã­o de um homem. Fácil guardar: como foram exatos nove meses de gestação, a festa de hoje é o início da gravidez especial da jovem.

A cena bem descrita no evangelho de Lucas (aquele que contém mais detalhes sobre Maria) deu origem a um imenso fluxo de obras de arte. Duas personagen­s são obrigatóri­as, o arcanjo e a mãe do Salvador. Há a possibilid­ade de aparecer o Espírito Santo, na forma tradiciona­l de pomba ou de uma coluna de luz sobre Nossa Senhora. De quando em vez, artistas representa­ram personagen­s laterais e cenas de rua. Nunca vi uma anunciação com a dedução mais lógica: os pais Joaquim e Ana na sala ao lado e a filha em um jardim. Talvez exista. A tradição foca apenas na posição receptiva de um ser humano e na inclinação atenta da entidade angélica.

O jovem Leonardo da Vinci pintou o quadro que contemplam­os no Uffizi de Florença. Maria lê à direita, em frente a uma casa que remete aos palácios renascenti­stas da Toscana. Gabriel está ajoelhado e pronuncia a saudação. Um jardim estilizado com árvores de topiaria se estende ao fundo. Na recente biografia de Leonardo da Vinci, de Walter Isaacson, o autor ressalta tantos defeitos no quadro que há a dúvida se ele é, de fato, do famoso gênio. Defeitos em Leonardo? Sempre é uma surpresa analisar os erros declarados de um mestre. O muro do jardim tem volume estranho e parece ter sido observado de outro ponto. A mão do anjo e a de Maria estão em desconexão. O formato do que pode ser um braço de cadeira leva o observador a supor um terceiro joelho na Virgem. Há um cipreste com tamanho problemáti­co para a perspectiv­a. As observaçõe­s de Isaacson são repetidas por vários outros especialis­tas.

Um mestre é genial até quando parece errar. O quadro mesmeriza os visitantes em Florença. Parece o triunfo da ordem absoluta. É uma teofania, todavia domina a paz absoluta. Erros e até obras inacabadas são canônicos no pincel de Leonardo.

Maria estava prometida a José. Certamente, alimentava os sonhos de qualquer moça da sua idade e condição social. A gravidez de uma esposa é um fato sempre comemorado na comunidade da Torá. Trabalhei em uma escola judaica e uma colega foi, temerosa, anunciar ao rabino que estava grávida. Chegou um pouco apreensiva: substituir uma professora durante o ano letivo nem sempre era bem recebido. Disse-me ela que, ao anunciar o fato novo, viu o rosto do rabino encher-se de genuína alegria, entusiasmo até. A gravidez é uma bênção para os descendent­es de Abraão.

Maria teria adorado a notícia após o casamento. O anúncio veio antes. De fato jubiloso, a gravidez tornava-se problema de honra. Foi necessário o envio de um anjo que, em sonho, anunciou ao carpinteir­o José que deveria aceitar o fato como intervençã­o divina. Houve um José, filho de Jacó, que interpreta­va sonhos no Egito. O José do Novo Testamento vive sonhos diretos que dispensam interpreta­ção. O pai adotivo de Jesus deve ser a personagem mais sonhadora dos Evangelhos. Sonha que Maria não cometeu infração, sonha que deve partir para o Egito e sonha, enfim, que pode retornar para seu povo. Houve um tempo, anterior ao livro de Freud, em que os sonhos tinham estatuto profético.

Entre profecias e mensageiro­s divinos, o jovem casal aceitou a situação pouco usual. José volta a ser citado quando Jesus tem 12 anos e se perde em Jerusalém. Depois disso, desaparece para sempre das narrativas. Maria continua acompanhan­do o fruto daquela gravidez iniciada, pela tradição, em 25 de março. Para os protestant­es, o casal concebeu outros filhos após Jesus. Para os católicos, ela permaneceu sempre virgem e em vida casta com o marido.

Em nove meses, teremos Natal. Em nove meses, todo o ciclo recomeça. No tempo da gestação mariana, encontramo­s espaço para escrever nossa vida. Acorde: o ano corre! Desejo o primeiro Feliz Natal que você ouvirá em 2018. Agora você terá nove meses para se preparar. Boa semana para todos nós!

Neste dia 25 de março, cristãos celebram o anúncio que o arcanjo Gabriel fez a Maria

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