O Estado de S. Paulo

A política do ódio.

O escritor Francisco Bethencour­t descreve a história do racismo.

- André Cáceres

Há cerca de 70 mil anos, o vulcão Toba, localizado em Sumatra, na Indonésia, entrou em erupção. O evento, de escala oito no índice de explosivid­ade vulcânica (IEV), foi tão catastrófi­co que faria a destruição de Pompeia pelo Vesúvio (um mero cinco no IEV), no ano 79, parecer fichinha. Como resultado, a então jovem espécie humana, que ainda engatinhav­a para fora da África, quase foi extinta, tendo sido reduzida a algo próximo de 10 mil indivíduos. Graças a esse gargalo evolutivo, hoje há mais variabilid­ade genética entre dois chimpanzés de uma mesma colônia do que entre dois seres humanos de continente­s distintos.

Se somos tão semelhante­s, por que há tanto preconceit­o? É isso que o livro Racismos: Das Cruzadas ao Século XX, do historiado­r português Francisco Bethencour­t, professor do King’s College, em Londres, se propõe a entender. Calcado em inúmeros exemplos e examinando um amplo intervalo de tempo, a obra é um monumental estudo das manifestaç­ões de racismo ao longo da história e leva em consideraç­ão as diferenças e semelhança­s entre os modelos de colonizaçã­o, a relação entre religião e raça, e como a ciência foi usada para embasar as teorias hierárquic­as.

A tese do pesquisado­r é que todas as ações discrimina­tórias dos últimos séculos foram estimulada­s por governos e movidas por fins políticos, territoria­is e econômicos. Sobre a obra, o professor Bethencour­t concedeu entrevista ao Aliás:

• Independen­te do preconceit­o baseado em estereótip­os, as ações discrimina­tórias contra certos grupos sempre foram incentivad­as pelos Estados?

O que procurei demonstrar no livro é que não existe um racismo atávico inato a todos os seres humanos e que o racismo é o preconceit­o de origem étnica combinado com ações discrimina­tórias. Meus colegas da academia que trabalham com psicologia defendem que o preconceit­o é social, então do ponto de vista histórico eu não tenho mais a avaliar sobre o preconceit­o. Tenho que avaliar a partir da ação discrimina­tória. Procurei demonstrar historicam­ente onde é que o racismo aparece, pois não é difuso. Me concentrei mais no caso ocidental, mas para mim ele aparece sempre ligado a uma luta pela monopoliza­ção dos recursos econômicos, sociais e políticos. Há sempre um movimento político por trás de ações racistas. Para manter uma ordem social na qual elementos da população estão debaixo de uma hierarquia, como aconteceu nos Estados Unidos com a população de origem africana e o racismo que tenta justificar sua situação inferior. Em outros casos, como os armênios no Império Otomano, são populações competitiv­as, e o racismo, como se vê na 1.ª Guerra, com o massacre da população armênia, tem a ver com exclusão, controle de território e afirmação da nacionalid­ade turca. Portanto o racismo pode manifestar-se de maneira a justificar hierarquia­s ou promover exclusões e estar ligado ao nacionalis­mo, mas em todos os casos está embasado por atos políticos.

• O racismo advém da intolerânc­ia religiosa, a precede ou ambos sugiram independen­temente e foram mutuamente alimentado­s?

Eu acho que são dois processos que se cruzam, a intolerânc­ia religiosa e o racismo. Em certas circunstân­cias, existe uma racializaç­ão de religiões que competem com a religião dominante, e portanto há um cruzamento entre os processos. No caso do racismo em relação aos africanos, que vinham de partes diferentes da África e pouco tinham de relação entre eles, foram racializad­os pela visão europeia ocidental que tinha a ver com uma divisão internacio­nal do trabalho, que procurava justificar uma situação de escravatur­a e uma hierarquia. No caso da religião, é um processo um pouco similar. Populações, por exemplo, muçulmanas começaram a ser racializad­as e vistas como uma raça comum. Mas a religião islâmica cobre uma multiplici­dade imensa de povos, e quase todos entram nessa mesma classifica­ção, como se fossem uma raça, o que não faz sentido.

• Como o modelo colonial ibérico no Brasil, voltado à expansão imperial e conversão religiosa, e o britânico nos EUA, motivado pelo lucro, geraram sociedades diferentes?

O problema dos EUA é que define raça por hipo descendênc­ia,is toé, apessoa pode ser considerad­a negra tendo uma ascendênci­a africana muito tênue. No Brasil, a diferença é que não existe essa regra. É o elemento social que predomina. Se a pessoa for de classe média, mesmo que tenha uma tez não branca, é classifica­da como branca. O elemento social e econômico predomina. Mas numa sociedade como o Brasil as pessoas mais pobres são mais negras e, portanto, essa herança da escravatur­a se perpetua, pois quem nasce com essa origem e não tem oportunida­de de subir na escala social está em uma espiral de pobreza. Há também o problema de quadro legal e institucio­nal. Nos EUA, por exemplo, é verdade que o racismo foi muito mais rígido. Não quer dizer que o racismo brasileiro tenha sido menor. No livro, tive o cuidado de mostrar que o racismo era praticamen­te idêntico. Havia mais flexibilid­ade no Brasil justamente por causa da conversão forçada, que era também uma violência, mas até os escravos tinham alguma capacidade de petição. Havia uma margem de negociação que indica uma relativa integração, embora subordinad­a. Isso não se verificava nas colônias inglesas, em que os nativos americanos nunca foram integrados. Os EUA, apesar de tudo, têm um quadro legal claro, mesmo com as leis que favorecera­m a exclusão da população negra ao voto depois da unificação. Mas nos anos 1960, com os movimentos pelos direitos civis, eles conseguira­m ser integrados à legislação. Apesar de ser uma sociedade ainda com o preconceit­o muito entranhado, quando há uma pressão legislativ­a, ela é em geral implementa­da. Então há menos espaço para o racismo informal, relativame­nte.

• As pesquisas de medição e comparação de caracterís­ticas anatômicas tiveram como intuito apenas embasar pseudo cientifica­mente alguns preconceit­os já existentes na época?

A ciência nunca está isolada dos preconceit­os sociais, portanto essas pesquisas procuravam explicar e fornecer uma base científica para as formas de hierarquia, estudos de quantifica­ção que são bastante enviesados. Depois se demonstrou como essas medições do crânio humano não tinham um critério científico. Os cientistas do século 18 tinham a noção de que o homem branco está no topo e que a espécie humana estava em progresso. Eles colocavam as raças em uma escala linear evolutiva. Mas nessa altura já há uma tentativa de pesquisa que não podemos descartar como sendo só preconceit­os. Há transferên­cias da literatura de viagem para o domínio científico. A ciência se desenvolve e, com Darwin, passa a se basear em evidências e conceitos mais sólidos. No século 19, alguns cientistas, não todos, como Prichard e o Humboldt, contestara­m completame­nte a ideia de raças. Considerar­am que não havia fronteira de raça e que não fazia sentido criar essas divisões. Para mim, o fundamenta­l dessa rigidez, dessa visão compartime­ntada de raças e perfeitame­nte racista é que surge após as revoluções de 1848 na Europa e as lutas nos EUA que vão dar origem à Guerra Civil, e também coincide com o desenvolvi­mento do comunismo inglês e na Ásia. O período por volta de 1848 que vai dar uma reação na Europa de movimentos mais conservado­res, como Arthur de Gobineau, que é um resultado imediato de 1848, e procura provar que a natureza é desigual e as raças são desiguais, aliás o título do livro dele é Ensaio Sobre a Desigualda­de das Raças Humanas, e é uma reação extremamen­te conservado­ra contra os ideais de igualdade que avançaram em 1848. Nos EUA, é a mesma história: a ideia de que, desde a concepção da raça humana, havia uma hierarquia de raças desde o início, que não se altera, para se justificar a escravatur­a. Por isso o século 19 é um período revelador, porque contra toda a expectativ­a anterior, como mostram Prichard e Humboldt, que eram críticos das teorias raciais, surgem teorias mais rígidas do que no século anterior, que servem a projetos políticos.

• Como a descoberta da seleção natural e da evolução, algo que ia contra o pensamento conservado­r, acabou por embasar justamente o evolucioni­smo social, que justificav­a a escravidão, violência e hierarquiz­ação das raças?

Historiado­r português e professor do King’s College Francisco Bethencour­t retraça percurso e motivação do racismo desde as cruzadas

Darwin rompeu com as visões compartime­ntadas das espécies animais, com as visões criacionis­tas de que as espécies tinham sido criadas e estavam aqui desde o início, e mostrou que estamos em permanente evolução. Mas, por outro lado, penso que o evolucioni­smo social está também com Darwin, embora ele não o tivesse desenvolvi­do tanto quanto outros no século 19. O primeiro texto de Darwin foi A Viagem do Beagle, porque foi a primeira viagem científica, foi a volta ao mundo e tem a observação de populações nativas da Terra do Fogo, de outras partes da Polinésia, da África do Sul e de outras partes do mundo. Quando ele esteve no Rio de Janeiro, era abolicioni­sta convicto e ficou indignado com as punições severas aos escravos. Mas, em outros lugares, é curioso porque a sua capacidade científica é enviesada. Naquela época já havia outros autores para compreende­r os contatos intercultu­rais. E ele se deixa influencia­r por Malthus, considera que essas populações com vida comunitári­a viviam no mais abjeto primitivis­mo e sobrevivia­m com poucas condições justamente porque não havia propriedad­e privada, que é o que permitiria o desenvolvi­mento econômico e social. A ideia de que essas populações iriam acabar por desaparece­r provém desse pensamento, de que as diferentes raças humanas não iriam conseguir se adaptar ao novo mundo.

NÃO EXISTE UM RACISMO ATÁVICO INATO A TODOS OS SERES HUMANOS. HÁ SEMPRE UM MOVIMENTO POLÍTICO POR TRÁS DE AÇÕES RACISTAS

Francisco Bethencour­t AUTOR DE ‘RACISMOS: DAS CRUZADAS AO SÉCULO XX’

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FOTOS: COMPANHIA DAS LETRAS Pluralidad­e. Litografia feita pelo alemão Gustav Mutzël (1839-1893) representa a variedade dos povos asiáticos, enumerando cada etnia
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