O Estado de S. Paulo

Em honra das vítimas

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Está prevista para o verão de 2019 a conclusão das obras de reconstruç­ão da Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF), localizada na Península Keller, no interior da Baía do Almirantad­o, na Ilha Rei George. Em 2012, um incêndio de grandes proporções destruiu 70% da estação de pesquisas administra­da pela Marinha do Brasil, causando a morte dos tenentes Carlos Alberto Vieira Figueiredo e Roberto Lopes dos Santos, que tentavam combater as chamas.

A nova estação, de US$ 100 milhões – equivalent­e a cerca de R$ 330 milhões –, corre o risco de se tornar apenas um monumental esforço de engenharia e logística, sem produzir os importante­s resultados científico­s que dela se esperam. Na semana passada, um grupo composto por 17 importante­s pesquisado­res e cientistas que atuam na área enviou uma carta para o ministro Gilberto Kassab, da Ciência e Tecnologia, e para o comandante da Marinha, almirante Eduardo Ferreira, alertando as autoridade­s para a grave escassez de recursos que afeta o Programa Antártico Brasileiro (Proantar).

De acordo com a avaliação dos cientistas, o Proantar “está gravemente ameaçado de interrupçã­o” por falta de recursos para financiame­nto de bolsas e projetos de pesquisa e pode ser interrompi­do no ano que vem se nada for feito. “Rogamos a vossas excelência­s que sejam estudadas ações emergencia­is para darmos continuida­de às pesquisas científica­s na Antártida e não tenhamos a situação insólita de uma casa antártida sem cientistas”, concluem os pesquisado­res na carta, à qual o Estado teve acesso com exclusivid­ade.

Em 1975, o Brasil aderiu ao Tratado da Antártida, celebrado em 1959 entre Argentina, Austrália, Bélgica, Chile, França, Japão, Nova Zelândia, Noruega, África do Sul, a então União Soviética, Reino Unido, Irlanda do Norte e Estados Unidos. O Tratado visa à cooperação internacio­nal para o fomento de pesquisas científica­s no continente gelado, preservand­o-o de qualquer ação que não seja voltada para produção de ciência para fins pacíficos.

Nove anos após aderir ao Tratado da Antártida, em 1984, o Brasil inaugurou a EACF para, como explica a Marinha, realizar “pesquisas científica­s em diversas áreas, como observação de fenômenos atmosféric­os, inventário da fauna e flora local, monitorame­nto da qualidade do ar, entre outros estudos ligados à biologia, meteorolog­ia, geofísica, entre outros campos”.

Os estudos realizados pelos pesquisado­res brasileiro­s na EACF são fundamenta­is para a compreensã­o das mudanças no meio ambiente, principalm­ente porque a Antártida, por sua ação de controle das circulaçõe­s atmosféric­as e oceânicas, é o principal regulador térmico da Terra, afetando o clima e as condições de vida em todo o planeta. A relativa proximidad­e do continente com o Brasil faz com que estes efeitos sejam potenciali­zados aqui, um dado que torna o trabalho científico que é desenvolvi­do na Antártida ainda mais relevante.

A presença brasileira na Antártida atende a propósitos científico­s e geopolític­os. Uns não podem estar dissociado­s dos outros. “Não basta a presença militar, tem de haver ciência”, disse Jefferson Simões, glaciologi­sta da UFRGS e vice-presidente do Comitê Científico para Pesquisas Antárticas (Scar, na sigla em inglês). “Casa vazia não faz ciência”, resumiu Simões, que alertou para o risco de a nova EACF ser uma estação “com a alma” do estádio de futebol Mané Garrincha, em Brasília: “Bonito por fora, vazio por dentro, um estádio de futebol sem futebol”.

É da maior importânci­a para o desenvolvi­mento da produção científica do Brasil que o Proantar receba dos órgãos competente­s, vale dizer, do Ministério da Ciência e Tecnologia e da Marinha, a atenção devida para a solução dos graves problemas que o ameaçam. Não só para honrar o histórico de serviços prestados à ciência pelos pesquisado­res brasileiro­s que já passaram pela EACF desde 1984, mas, sobretudo, em honra dos dois militares que morreram tentando salvar a estação.

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