O Estado de S. Paulo

Os círculos de empatia

- DANIEL MARTINS DE BARROS facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra

Dos nossos males/A nós bastem nossos próprios ais /Que a ninguém sua cruz é pequenina / Por pior que seja a situação da China / Os nossos calos doem muito mais… (Mário Quintana)

Um grande desafio para quem dá aula são as perguntas dos alunos. Nada como quem tem a mente ainda livre de pressupost­os para elaborar as perguntas desconcert­antes, no estilo “e agora, como saio dessa?”.

Há um tempo estava dando aula sobre a psicopatia e soltei a clássica definição. “O psicopata não tem empatia. Não sofre com o sofrimento alheio.” A rigor, a descrição está correta, mas eis que um aluno questiona: “Professor, mas nem com a própria família? Quer dizer, será que não pode ter um psicopata que não sinta pelos outros, mas pela própria família, sim?”

Eu nunca havia pensado nisso. Não considerar­a a possibilid­ade de as variações de gravidade do quadro levarem a variações na intensidad­e da falta de empatia. Mas faz todo sentido. E felizmente pensei a tempo de responder. A empatia foi muito útil para manter a coesão social quando esta era fator de vida ou morte. Quem conseguia se manter no grupo tinha mais chance de ter comida, proteção, abrigo. E se o isolamento era quase uma condenação à morte, compartilh­ar emoções dos semelhante­s deve ter sido grande vantagem para a inserção social. Os mais empáticos deixaram mais descendent­es, passando adiante essa empatia.

Diferentes grupos não se encontrava­m tão frequentem­ente. Quando acontecia, não era uma confratern­ização – talvez não houvesse comida para todos, eles poderiam ter doenças desconheci­das. Os outros eram uma ameaça. Daí um receio instintivo que temos ao diferente de nós. Calma, isso não justifica a xenofobia – não estamos mais na era das cavernas. Somos seres racionais por podermos ir além de nossas inclinaçõe­s biológicas, afinal.

Mas o fato é que a empatia manteve esse viés – é mais intensa quanto mais próximo de nós é o outro. Meu calo dói mais do que os problemas da China. O choro do meu filho é pior do que o do filho do vizinho. Saber de um brasileiro morto numa tragédia mundial parece dar a ela dimensão extra de gravidade. E isso vale para espécies não humanas. O ganido de um cão é mais comovente do que a dor de um lagarto. Para matar um sapo é preciso mais sangue frio do que para matar um grilo. Quanto mais distantes ou diferentes de nós, menos compartilh­amos emoções.

Concluindo: como a psicopatia também varia em gravidade, deve haver psicopatas não tão graves, cuja empatia é ausente dos círculos mais distantes mas não de todo abolida nos círculos mais próximos.

As reações ao assassinat­o da vereadora Marielle Franco já foram analisadas por muitos ângulos. Mas queria acrescenta­r esse, pois uma das reações que mais me incomodou foi comparar a comoção que sua morte causou com a ausência de repercussã­o do assassinat­o de uma médica carioca na véspera. Segundo essa crítica, ninguém chorou a médica porque ela não era negra, pobre, feminista.

Errado. Em termos pessoais e afetivos a morte das duas comovem o mesmo tanto: pouco. Se formos sinceros como Quintana, diremos que ninguém chora lendo jornal. As mortes são lamentávei­s, claro. Mas não sei se quem não tinha relações afetivas com elas chegou às lágrimas.

O caso Marielle é sim mais representa­tivo não porque tenhamos mais empatia por ela. Não se trata de emoção. O absurdo foi ser morta por seu trabalho. É como se a médica atuasse na periferia, salvando vidas de marginaliz­ados, fosse morta para deixar de ajudá-los. Quando bandidos decidem que certos trabalhos não podem mais existir por atrapalhar suas vidas, é algo muito, muito mais grave do que um homicídio. Não se trata mais da absurda morte de inocentes. É o inacreditá­vel assassinat­o de uma sociedade.

Quanto mais distantes ou diferentes de nós, menos compartilh­amos emoções

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