Os círculos de empatia
Dos nossos males/A nós bastem nossos próprios ais /Que a ninguém sua cruz é pequenina / Por pior que seja a situação da China / Os nossos calos doem muito mais… (Mário Quintana)
Um grande desafio para quem dá aula são as perguntas dos alunos. Nada como quem tem a mente ainda livre de pressupostos para elaborar as perguntas desconcertantes, no estilo “e agora, como saio dessa?”.
Há um tempo estava dando aula sobre a psicopatia e soltei a clássica definição. “O psicopata não tem empatia. Não sofre com o sofrimento alheio.” A rigor, a descrição está correta, mas eis que um aluno questiona: “Professor, mas nem com a própria família? Quer dizer, será que não pode ter um psicopata que não sinta pelos outros, mas pela própria família, sim?”
Eu nunca havia pensado nisso. Não considerara a possibilidade de as variações de gravidade do quadro levarem a variações na intensidade da falta de empatia. Mas faz todo sentido. E felizmente pensei a tempo de responder. A empatia foi muito útil para manter a coesão social quando esta era fator de vida ou morte. Quem conseguia se manter no grupo tinha mais chance de ter comida, proteção, abrigo. E se o isolamento era quase uma condenação à morte, compartilhar emoções dos semelhantes deve ter sido grande vantagem para a inserção social. Os mais empáticos deixaram mais descendentes, passando adiante essa empatia.
Diferentes grupos não se encontravam tão frequentemente. Quando acontecia, não era uma confraternização – talvez não houvesse comida para todos, eles poderiam ter doenças desconhecidas. Os outros eram uma ameaça. Daí um receio instintivo que temos ao diferente de nós. Calma, isso não justifica a xenofobia – não estamos mais na era das cavernas. Somos seres racionais por podermos ir além de nossas inclinações biológicas, afinal.
Mas o fato é que a empatia manteve esse viés – é mais intensa quanto mais próximo de nós é o outro. Meu calo dói mais do que os problemas da China. O choro do meu filho é pior do que o do filho do vizinho. Saber de um brasileiro morto numa tragédia mundial parece dar a ela dimensão extra de gravidade. E isso vale para espécies não humanas. O ganido de um cão é mais comovente do que a dor de um lagarto. Para matar um sapo é preciso mais sangue frio do que para matar um grilo. Quanto mais distantes ou diferentes de nós, menos compartilhamos emoções.
Concluindo: como a psicopatia também varia em gravidade, deve haver psicopatas não tão graves, cuja empatia é ausente dos círculos mais distantes mas não de todo abolida nos círculos mais próximos.
As reações ao assassinato da vereadora Marielle Franco já foram analisadas por muitos ângulos. Mas queria acrescentar esse, pois uma das reações que mais me incomodou foi comparar a comoção que sua morte causou com a ausência de repercussão do assassinato de uma médica carioca na véspera. Segundo essa crítica, ninguém chorou a médica porque ela não era negra, pobre, feminista.
Errado. Em termos pessoais e afetivos a morte das duas comovem o mesmo tanto: pouco. Se formos sinceros como Quintana, diremos que ninguém chora lendo jornal. As mortes são lamentáveis, claro. Mas não sei se quem não tinha relações afetivas com elas chegou às lágrimas.
O caso Marielle é sim mais representativo não porque tenhamos mais empatia por ela. Não se trata de emoção. O absurdo foi ser morta por seu trabalho. É como se a médica atuasse na periferia, salvando vidas de marginalizados, fosse morta para deixar de ajudá-los. Quando bandidos decidem que certos trabalhos não podem mais existir por atrapalhar suas vidas, é algo muito, muito mais grave do que um homicídio. Não se trata mais da absurda morte de inocentes. É o inacreditável assassinato de uma sociedade.
Quanto mais distantes ou diferentes de nós, menos compartilhamos emoções