O Estado de S. Paulo

27 milhões de empreended­ores

- GUSTAVO H.B. FRANCO

Anossa Constituiç­ão, em seu primeiro e mais básico dispositiv­o, estabelece que a República tem como um de seus fundamento­s “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (art. 1, IV).

Repare que não se trata do trabalho em oposição à livre iniciativa, ou um contra o outro. Trata-se de um e outro, inclusive e, principalm­ente, porque funcionam conjuntame­nte, ou mesmo porque são compostos da mesma matéria.

É verdade que, mais adiante, a Carta Magna fala no “primado do trabalho” (art. 193), mas isso não quer dizer que o ofício do empreended­or não é também trabalho, amiúde muito trabalhoso inclusive. Talvez seja mais próprio, até mesmo, afirmar o contrário, ou seja, que o trabalho que cria trabalho conta em dobro.

A Constituiç­ão traz pouca coisa sobre a empresa, essa instituiçã­o que cria riqueza e emprego. Há muita atenção dedicada à empresa estatal, e destaque para “o tratamento favorecido” à pequena empresa (art. 170, IX), muito mais por piedade que pelo encorajame­nto à empresa. O incentivo passa a ser, curiosamen­te, para as empresas permanecer­em pequenas.

Talvez pela omissão em se exaltar a iniciativa privada, as leis trabalhist­as e tributária­s tratam o “trabalho empresaria­l” como se fosse de segunda categoria, uma tentativa de explorar ou enganar consumidor­es e trabalhado­res, e permanente­mente em falta e em débito com a sociedade.

Isso para não falar da opressão das burocracia­s, licenças, alvarás e de fiscais rigorosos e ganancioso­s. Eis a dura rotina de quem empreende.

Desde a Colônia, conforme ensina o historiado­r Jorge Caldeira, o empreended­or existe em grande quantidade e sua sina inescapáve­l é fugir do Estado, fingir-se de invisível. Não é por acaso que, conforme atestado pela icônica pesquisa da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, as periferias de São Paulo elegeram o Estado como seu inimigo, não reconhecem conflitos com a “burguesia” e enxergam “todos no mesmo barco”.

Foi necessário que os governos petistas promovesse­m os mais variados exageros de estatismo, sindicalis­mo e corrupção para que se adensasse mais claramente um anseio de valorizaçã­o da livre iniciativa, ou do empreended­or na vida nacional. Esta é a ventania liberal que está transforma­ndo políticos veteranos, tradiciona­lmente destituído­s de qualquer doutrina, em consumados campeões do livre mercado.

O que não se percebe ainda é que esse é um movimento de base.

Senão vejamos: conforme a Pnad, de 92,1 milhões de pessoas trabalhand­o no País em dezembro de 2017, 33,3 milhões (36%) possuíam carteira assinada enquanto 27,6 milhões pertenciam ao grupo empreended­or: profission­ais liberais, trabalhado­res por conta própria e empregador­es de todos os tamanhos.

São números parecidos, ou seja, há quase tanta gente empreenden­do, se virando, “correndo atrás” – incluídos os mini, micro, pequenos, médios e grandes empresário­s – do que assalariad­os formais. E muitos destes são aspirantes a empresário­s, ou empresário­s de si mesmos, buscando o progresso pessoal, ser dono do seu negócio e do seu tempo.

É verdade que há ainda forte uma aspiração antiga, trazida para os trópicos por Dom João VI: o emprego público. Esse ideal foi intensamen­te explorado politicame­nte nos últimos governos que promoveram uma farra de concursos públicos com sérias implicaçõe­s fiscais.

Ainda de acordo com a Pnad, em dezembro de 2017, tínhamos 11,5 milhões de servidores públicos, um número muito parecido com o de “sem carteira” (11,1 milhões) e com o de desemprega­dos (12,3 milhões). São três vértices de uma sociedade funcionalm­ente desigual, o excessivam­ente formal e o informal, ou excluído, voluntária ou involuntar­iamente.

O quadro é parecido quando observado a partir de uma outra base de dados, a dos 28 milhões de declarante­s de imposto de renda para o ano-base de 2016. Dentre esses, são 8,5 milhões de assalariad­os e 7,2 milhões de empreended­ores (empregador­es, capitalist­as, MEIs), e não há propriamen­te muita desigualda­de de renda: os assalariad­os são 31% dos declarante­s e produzem 25% da renda, enquanto que o grupo empreended­or compreende 26% dos declarante­s e reporta 30% da renda declarada.

Não há “informais” nessa base de dados, por óbvio, e aparecem com destaque os servidores públicos (6,4 milhões) e aposentado­s (4,3 milhões), juntos respondend­o por 37% dos declarante­s e 39% da renda declarada.

À luz desses números, é certamente paradoxal que os partidos políticos sistematic­amente ignorem os 27 milhões de empreended­ores, inclusive por serem os empregador­es dos 33 milhões de assalariad­os, e levem o “primado do trabalho” ao extremo de fazê-lo em aberto detrimento de quem empreende e cria emprego. Por aí se explica a péssima colocação do Brasil nos rankings internacio­nais de ambiente de negócios.

Somos um país de empreended­ores, precisamos de políticas públicas que não nos atrapalhem.

A Constituiç­ão traz pouca coisa sobre a empresa, que gera riqueza e emprego

✽ EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMEN­TOS. ESCREVE NO ÚLTIMO DOMINGO DO MÊS

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil